Este artigo que saiu no Globo de ontem, no finzinho da página de opinião, pode ter passado despercebido. É longo, mas recomendo a leitura. Mostra como algumas coisas funcionam neste mundo esquecido por Deus.
"Washington não quer a Usina de Resende
OTHON L. P. DA SILVA
A produção de combustível é a etapa mais importante no domínio da tecnologia nuclear. Para obtê-lo, as usinas de enriquecimento de urânio utilizam a técnica da difusão gasosa ou da ultracentrifugação. Ao negociar o acordo com a Alemanha, nos anos 70, o Brasil tentou garantir a transferência da tecnologia de ultracentrifugação. Não conseguiu, porque os Estados Unidos vetaram.
O Brasil, então, aceitou a alternativa da tecnologia jet-nozzle, que até à compra não havia enriquecido um único grama de urânio. Em 1978, diante do fracasso consumado do jet-nozzle, o signatário deste artigo propôs e o Ministério da Marinha aceitou desenvolver ultracentrífugas para enriquecer o urânio disponível no país.
Fizemos a primeira operação quatro anos mais tarde, com ultracentrífuga integralmente idealizada, projetada e construída no Brasil. Em 1991, entrou em operação um módulo de cerca de 500 ultracentrífugas, com capacidade para produzir 280 quilos/ano de urânio com enriquecimento inferior de 5%. Esse teor é superior ao necessário para o combustível da usinas nucleares de Angra dos Reis e atende às necessidades de um reator naval, em desenvolvimento. Um núcleo deste reator utiliza cerca de seis toneladas de urânio a 5% e permite ao submarino operar por dez anos. A propulsão nuclear, observe-se, não é uma aplicação bélica, segundo a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), órgão da ONU.
No governo Sarney, nos anos 80, quando construiu o primeiro módulo da Usina Experimental em Aramar, São Paulo, o país uniu-se à Argentina e criou uma agência binacional para fazer inspeções nos padrões da AIEA. Pouco depois, no governo Collor, incluiu-se a AIEA no acordo, permitindo-lhe o controle direto do urânio enriquecido produzido - salvaguardados segredos comerciais e tecnológicos. Até então, as 500 ultracentrífugas disponíveis ficavam absolutamente visíveis no módulo de Aramar. Para permitir o controle sem escancarar a tecnologia, adotamos solução parecida com a do mictório público francês: em fileiras duplas, as centrífugas passaram a funcionar entre dois biombos colocados cerca de 30 centímetros acima do solo. Permitia-se a visão dos pés (suas bases), sem exibir o corpo, possibilitando a monitoração das tubulações de entrada e saída de hexafluoreto de urânio.
A solução foi aprovada pela AIEA. Ela instalou câmeras cinematográficas seladas para garantir vigilância 24 horas por dia, com direito a uma cota anual de inspeções programadas - e de surpresa - em todas as instalações nucleares brasileiras.
Já o governo Fernando Henrique, contrariando décadas de coerência em política externa, aceitou ratificar o Tratado de Não Proliferação nuclear. O TNP é assimétrico e discriminatório por dispensar a inspeção em países nuclearmente armados e limitar a inspeção aos desarmados.
O governo americano, a pretexto de evitar a proliferação, agora nos pressiona a aderir ao protocolo adicional aos acordos de salvaguardas. Ele amplia as assimetrias do TNP, ao exigir tantas inspeções quanto forem arbitradas. Não apenas nas instalações nucleares mas em qualquer parte do território considerada suspeita - o que inclui nossas residências, se assim decidirem.
É fácil entender por que os EUA procuram impedir o avanço da Usina de Enriquecimento que a Indústrias Nucleares Brasileiras (INB) está construindo em Resende (RJ), com tecnologia cedida pela Marinha e sob supervisão da AIEA. Há uma razão econômica e outra estratégico-militar.
A econômica: como dispõe de grandes reservas de urânio e tecnologia própria - comercialmente competitiva - para produção do combustível, o país deixaria de ser exportador de minério e passaria à condição de importante global player no bilionário mercado de combustível nuclear.
Mas há, também, um motivo estratégico-militar. Os artefatos bélicos nucleares podem ser classificados de duas formas: os de destruição em massa e os inibidores de concentração de forças. Armas de destruição em massa são as de fusão (bombas de hidrogênio) e as de fissão de maior porte. As de baixa potência são inibidoras.
Qualquer operação militar para invasão ou ocupação de um território implica prévia concentração de forças. A existência de artefatos nucleares de baixa potência no território-alvo, com um vetor adequado de lançamento, funciona como poderoso inibidor.
Obviamente, não são do agrado de países que têm como opção política permanente a intervenção militar - independentemente da aprovação da ONU. A existência de uma usina de enriquecimento de urânio diminui o tempo entre a denúncia de todos os acordos e tratados já celebrados, e a eventual fabricação de artefatos (making nuclear weapon on short notice, no jargão internacional). É o que explica a ação americana - embora o Brasil tenha sempre deixado clara sua opção de não construir armas nucleares, chegando a incluir tal decisão na Constituição.
Sempre tivemos um comportamento exemplar em relação à não transferência de tecnologia sensível - diferentemente do Paquistão, que obteve a sua capacidade de enriquecer urânio através de um engenhoso programa de espionagem comandado pelo cientista Abdul Qadeer Khan e vendeu esta tecnologia a outros países. Sem as motivações bélicas daquele país, optamos por um sério programa de pesquisa e desenvolvimento que nos levou a melhores resultados técnicos e econômicos, a custos muito inferiores. E não vendemos a tecnologia desenvolvida.
As normas de inspeção da AIEA, às quais o Brasil atualmente está sujeito, são comprovadamente eficientes. São as mesmas utilizadas no pós-guerra por dezenas de anos, em relação aos regimes democráticos do Japão e da Alemanha, países que mantiveram renúncia à construção de artefatos mesmo nos momentos de crise na guerra fria. Não há razão para aceitarmos o endurecimento de normas, a pretexto das atitudes de outros países sujeitos a regimes não democráticos e com passado recente de confrontação com os EUA.
A proposta do presidente Bush de reiniciar testes nucleares e desenvolver uma nova geração de pequenos artefatos para serem usados de forma "cirúrgica", até mesmo contra países não nucleares, é preocupante para o mundo. Tais atitudes somadas a agressões, sem o respaldo do Conselho de Segurança da ONU, constituem forte estimulante à proliferação nuclear, principalmente nos países islâmicos com os quais tenham potencial de confrontação.
Desde a independência, o Brasil é um aliado dos Estados Unidos. O povo brasileiro aprecia vários aspectos da cultura americana, porém tem o direito de resistir às pressões e recusar o protocolo adicional aos acordos de salvaguardas, assim como serenamente, sem antagonismos, não aceitar vetos sobre atividades pacíficas com grande significado comercial.
O Brasil é aliado dos EUA, mas não pode aceitar veto sobre atividade pacífica e comercial."
OTHON L. P. DA SILVA é empresário, engenheiro naval, mecânico e nuclear e vice-almirante na reserva.
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