28.2.02

Para C.

Às vezes é melhor escrever na penumbra
Porque me lembro do mistério que você exala.
Fico cismando,
Tendo certeza, duvidando, fumando muito...
Nunca foi fácil inverter tudo tão rápido --
Mas nós conseguimos.

As palavras vão se soltando de você
Como quem procura um tesouro perdido
Fazem-me um carinho hipnótico
E eu cambaleio, não resisto.

Você me despe a alma tão sem aviso
Golpes certeiros -- pan!
E a cada estocada forte
Sinto a dor mais doce
E a vontade só de ouvir
E deitar no colo desse mistério
Afundar até enlouquecer
Para aprender
A não sentir tanto a minha (a nossa) falta.

26.2.02

Dois lindos devaneios: um da Crib Tanaka, outro da Alessandra Archer.

"Procurou versos espalhados em sua memória para tentar escrever uma canção. Não gostava de rimas, terminações que soavam como refrão de música de missa. Procurou achar a dor que descrevera na mesa de bar, mas o papel desmanchara-se. A testemunha única não resistira aos poemas que saíram dela em forma de rios. Tentou então, exalar de novo cheiro de margaridas pelos cabelos. Em vão. Sentada como criança triste, fazia bico até. Tentando escrever, terminou traçando linhas, formou desenhos. Tinha a vista turva, sentia-se abandonada. Ela mesma saíra de si e não avisou quando voltaria." (Crib Tanaka)

"Sabia que era perigoso falar sobre o assunto, ainda tão vivo. Era uma descoberta quase explosiva e feliz. Quis usar palavras, mas não as encontrou sublimes como pretendia. Porque assim precisavam ser para que expressassem com dignidade a lua daqueles humores. Era vontade esparsa de viver. Comera alguma fruta para amenizar a ansiedade. Sentiu-se liberta do porto de seus conhecidos e rotineiros sentimentos. Alargou-se. Mesmo assim, imaginou uma briga inexistente. Mas ao longe, bem ao longe, ouviu um rugido de uma porta batendo fortemente. Tampou os ouvidos, fechou os olhos e deixou aquele beijo urgente escapar. Não ouviu mais nada. Os olhos ficaram secos, o coração acelerado, as mãos um pouco trêmulas. Refez uma palavra-cruzada jogada no porta-revistas no canto da sala. Ouviu
um bêbado cantando uma bela canção. Dormiu embriagada pelo vento molhado da madrugada que era o que ainda restava de beleza naquele dia." (Alessandra Archer)

25.2.02

Reproduzo aqui o artigo que publiquei hoje no Informática Etc, no Globo:

Blognovela, uma idéia postada no ar

André Machado


Tenho dois blogs, um de poesia, o “Comentários e versos do cadafalso”, de poesia, e o “Cadafalso II”, de prosa, em <amachado.blogspot.com>. Estou postando no segundo um romance que escrevi em 1991, “Somente os amantes”. Entretanto, venho prosseguindo muito devagar, bem mais do que desejaria. O livro é relativamente grande, tem mais de 120 laudas, e à medida que comecei a digitá-lo e postá-lo, percebi que os capítulos eram muito extensos para o formato de um blog. Estou por isso redimensionando-os para que fiquem mais curtos, e criando novos climas na história sem querer (ou não).

***

Depois disso, refleti: o formato ideal para esse tipo de página pessoal seria uma novela curta, um folhetim cujas partes não fossem tão extensas e que se apresentasse mais objetivo, direto, dentro do estilo peculiar de um blog. Dias mais tarde, abri o arquivo de um livro inacabado, de 1998, que fala da paixão de um jornalista por uma mulher misteriosa que certa tarde lhe entrega um romance sobre imortalidade dentro da livraria do Palácio do Catete. E percebi que ali estava o que procurava: capítulos mais curtos, linguagem mais ágil, um ambiente de criação mais livre... No mesmo instante comecei mentalmente a chamar a história de “blognovela” e pensei no que faria para terminá-la.

***

A idéia do folhetim, naturalmente, não é nova. Sterne, Dumas e Dickens, entre outros, a aproveitaram com maestria. No século passado, com o advento da televisão, o folhetim transformou-se na nossa conhecida telenovela, um formato ainda extremamente popular mas que, acredito, dá sinais de exaustão. Eu costumava assistir a novelas quando era mais jovem, em especial às de Dias Gomes, como “O bem-amado”, “Bandeira 2”, “Saramandaia”... Mas as atuais me parecem pasteurizadas demais. E hoje, com a velocidade da informação, existe uma busca incessante por uma linguagem mais rápida, precisa, encontrada, por exemplo, em determinados seriados na TV por assinatura com textos enxutos e implacáveis, seja na esfera da comédia, do drama ou da ocorrência policial. Este é um dos caminhos que poderiam, talvez, ser adaptados para a ficção na internet, que trouxe de volta o prazer do texto, mas tem suas idiossincrasias virtuais: precisa comunicar instantaneamente, do contrário vamos adiante; não deve cuspir “calhamaços” de bits, pelo mesmo motivo; e precisa conter alguma forma de interação com o internauta que seja utilizável com simplicidade a qualquer impulso. Como um comment . Já repararam que escrevemos comments quase sempre num ímpeto?

***

Por isso acho que a década que adentramos vai ver o nascimento dos folhetins digitais -— nada a ver com e-books —, que vão criar uma linguagem própria a partir da concisão e certamente revolucionar, de alguma forma, a literatura. Os blogs têm papel fundamental nesse processo incontrolável e anárquico, bem ao estilo da Grande Rede, e são o meio ideal para a propagação das obras. Quem sabe não surge daqui a um tempo um grupo de intelectuais dispostos a romper com a mesmice do meio acadêmico e editorial e prontos a organizar uma “Semana de Arte Bloguerna”? Ela poderia acontecer no próprio ciberespaço. Está mais do que na hora de sacudir os conceitos de copyright, não sei se com o copyleft da Fundação Software Livre, para citar um exemplo, mas pelo menos com idéias e conceitos que sejam mais adequados a um meio tão plural quanto a web.

De modo que, mesmo postando devagarinho o romance, estou finalizando minha blognovela e pretendo postá-la em breve a fim de contribuir para o debate. Não só os capítulos serão menores, mas seu número será limitado para evitar uma quantidade interminável de posts. A linguagem também é menos formal do que a de meus escritos anteriores, sem desmerecer as idéias que quero passar. Existem ainda outras formas ideais para um blog, como minitextos — como a interessante série “Encontros e Desencontros” de Alessandra Archer <www.falae.com.br/encontrosedesencontros> e o desafio de historietas de 300 toques do Falaê, que fica no endereço <www.falae.com.br/300.html>. Para não falar nos posts de poesia.

***

Junto com os criativos webdesigners soltos por aí, tenho certeza de que nós, webwriters, podemos fazer uma diferença. E, se algum dia o evento que sugeri tomar forma, estaremos com certeza em vantagem com relação ao pessoal de 1922, pois haverá um público bem mais receptivo do que os burgueses que foram ver os modernos em SP e atiraram legumes no palco.

Bem, pode ser que os hackers do mal sejam reacionários em termos de literatura... mas no lo creo . ;-)

22.2.02

Um brinde

Brindemos ao nada
Beba-lhe o estouro dos tímpanos,
Sugue-lhe o vácuo maravilhoso
Quebre o relógio, que o tempo também é nada.
Não desejo a neurose desse mundo louco
Não quero você cravejada de jóias e
Cobras e lagartos e modas de Paris.
Nós seremos duas bolhas soltas
Cabeças no ar e pés também
De resto, apenas brindemos ao nada,
Porque não haverá dias seguintes.
Já que estou irritado com minha dureza crônica estes dias, aí vão algumas citações sobre dinheiro:

"Dinheiro não tem a mínima importância, desde que a gente tenha muito." (Truman Capote)

"Chega de homenagens. Eu quero o dinheiro." (Adoniran Barbosa)

"Os jovens, hoje em dia, imaginam que o dinheiro é tudo e, quando ficam velhos, descobrem que é isso mesmo." (Oscar Wilde)

"O dinheiro não nos traz necessariamente a felicidade. Uma pessoa que tem dez milhões de dólares não é mais feliz do que a que tem só nove milhões." (H. Brown)
Deu no Comunique-se:

"Agora até robô pode ser jornalista

Já imaginou um protótipo de computador que, através de um sistema de inteligência artificial, seja capaz de escrever notícias automaticamente? O que antes seria impossível foi desenvolvido pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Através de técnicas de processamento de linguagem, a máquina, batizada de Newsblaster, terá capacidade de coletar informações em fontes diversas, como CNN, Reuters, USA Today, Yahoo!, ABC News, entre outras, e, a partir daí, reorganizar informações e produzir uma matéria."

O patronato vai amar, né não? Robôs compilando matérias. Ótimo...
Vem cá, o que esses caras de Columbia têm na cabeça? Se ainda fosse para transformar certos políticos em robôs, eu entenderia.
Aliás, que tal um projeto para transformar o zé-povinho em robôs? Resolveria um bocado de problemas: doenças, controle de natalidade, fome... Plutocratas, uni-vos para patrocinar tão bela empreitada!

21.2.02

Annabel Lee

(Edgar Allan Poe)


It was many and many a year ago,
In a kingdom by the sea,
That a maiden there lived whom you may know
By the name of ANNABEL LEE;
And this maiden she lived with no other thought
Than to love and be loved by me.
I was a child and she was a child,
In this kingdom by the sea;
But we loved with a love that was more than love --
I and my Annabel Lee;
With a love that the winged seraphs of heaven
Coveted her and me.

And this was the reason that, long ago,
In this kingdom by the sea,
A wind blew out of a cloud, chilling
My beautiful Annabel Lee;
So that her highborn kinsman came
And bore her away from me,
To shut her up in a sepulchre
In this kingdom by the sea.

The angels, not half so happy in heaven,
Went envying her and me --
Yes! -- that was the reason (as all men know,
In this kingdom by the sea)
That the wind came out of the cloud by night,
Chilling and killing my Annabel Lee.


But our love it was stronger by far than the love
Of those who were older than we --
Of many far wiser than we --
And neither the angels in heaven above,
Nor the demons down under the sea,
Can ever dissever my soul from the soul
Of the beautiful Annabel Lee.

For the moon never beams without bringing me dreams
Of the beautiful Annabel Lee;
And the stars never rise but I feel the bright eyes
Of the beautiful Annabel Lee;
And so, all the night-tide, I lie down by the side
Of my darling -- my darling -- my life and my bride,
In the sepulchre there by the sea,
In her tomb by the sounding sea.

20.2.02

Sombras

Escolheste o lado das sombras para mover-te
Escolheste bem.
Quem precisa de luz? de saber? de verdade?
Somente criaturas infelizes.
Tu, não: tu escolheste o lado das sombras.
Elas não têm fundo, tampouco amargura;
Não têm destino, muito menos esperança;
Não têm leis, nem são cínicas.
As sombras são teu deus, cúmplice e amante.
És mais abençoada que outros seres, sobretudo
por um detalhe insignificante:
Não poderes mais mirar-te no espelho.
O quê? Não sabes?
Andaste tanto entre as sombras,
Que te tornaste uma delas.
O erro

Eu me dei de presente a ti
Mas não me desembrulhaste ansiosa
Como, inocente, pensei a princípio.
Deixaste-me na estante, quieto e taciturno,
Enquanto me fitavas com nítida desconfiança.
Pois meu presente tem, é claro, um passado,
E abri-lo representa tomar nos braços
Tudo o que vem com ele.

Então fiquei ali
De frente para o relógio na parede
E ao lado do calendário,
vendo passar a procissão de embrulhos mais amados do que eu.
Alguns te decepcionaram
Outros te deram prazer, por um tempo,
E uns poucos mereceram -- por vezes sem perceber --
tua paixão fulminante.

Num dia úmido de inverno, então,
Desviaste os olhos da hipnose a cabo
E te deparaste com aquele pacote embolorado na estante.
Cheia de tua solidão, furiosa com tua mais recente escolha,
Tomaste-me de chofre,
Rasgando em finas tiras o papel
E agarrando o meu coração.

Ah! mas que surpresa tiveste!
Ora, achavas que ele bateria ainda?
Sim, tal poderia ter sido a melhor panacéia para tua pobre alma
Mas esperaste diligentemente até o absoluto fim
Do prazo de validade.
Blitzkrieg

Dentro de mim
o avanço de um novo amor
é brutal como uma blitzkrieg
As débeis resistências vão caindo, uma a uma
Ante o fogo implacável da paixão
E minhas defesas são ceifadas aos milhares
pelos campos de concentração de seu olhar.

Potência ambiciosa,
você quer, porém,
conquistar o cosmo;
e eu sou apenas um jovem bastião sem importância.
Uma vez anexado a sua entourage e a seus despojos,
logo serei esquecido.
Por isso preciso mandar o quanto antes
Para o pelotão de fuzilamento
os generais do meu coração
Que me traíram na primeira hora
E se entregaram a você.

Preciso exterminar o sentimento amotinado em minhas tropas
Que já caminham sem seu Mestre para os braços do Inimigo.
Preciso matar você, ainda que seja em minha mente --
do contrário, a rendição será incondicional
e nada mais restará de meu ser.
E sua artilharia tomará apenas
uma terra devastada
Estéril e sem sentido.

15.2.02

O amor é mesmo lindo. Olhem esta pérola que um louco apaixonado pôs no site para nerds Slashdot no dia dos namorados lá dos EUA:

"Kathleen Fent Read This Story
Posted by CmdrTaco on Thursday February 14, @09:25AM
from the typed-with-one-pair-of-sweating-palms dept.
Kathleen, I wanted to do this in this most potentially embarassing way possible, and I figured doing it here and now, in front of a quarter of a million strangers was as good a way as any. I love you more then I can describe within the limits of this tiny little story. We've been together for many years now, and I've known for most of that time that I wanted to spend my life with you. Enough rambling. Will you marry me?
Update 15 minutes 30 seconds later: Subj: "Yes", message body: "Dork. You made me cry. :)" Hazah! I'm getting married! :)"

Mesmo que não seja verdade (e eu acho que ninguém seria bobo de pôr hoaxes no Slashdot), é muito maneiro ;-))))

O link para vocês verem a coisa na vera é este.
O grande momento de nossas vidas nunca é chegar lá: é consolidar o haver chegado lá. Sempre me lembro daquela história que reza que, tendo o grande general cartaginês Aníbal posto a Itália de joelhos, o comandante de sua cavalaria, Maárbal, instou-o a marchar sobre a aterrorizada Roma. Mas Aníbal, frio estrategista que era, recusou. E deixou passar, talvez, o momento de mudar a História para sempre com isso. Maárbal, então, teria proferido uma frase que resume a trágica saga de Aníbal e ecoou pelos séculos: "Com que então, Aníbal, sabes vencer uma batalha. Mas não sabes como usar tua vitória".
Eis a questão, meus amigos. Quando eu conseguir saldar todas as minhas dívidas, materiais e metafísicas, e ficar em paz comigo mesmo, espero me lembrar de novo desta historinha.
É fácil

É fácil matar, escreveu alguém, e eu concordo.
Porque você me matou com um olhar, e só estou de pé
Para iludi-la. Minha alma desceu aos infernos
E trava uma conversa animada com belzebu
Sobre a tentação.

Ah! Amor e desejo não se combinam, são como água e azeite
Mesmo que toda minha boa educação burguesa me diga o contrário.
Como posso amar alguém que desejo... desejo ver desfalecida,
Sem ar, úmida e delirante -- e sobre quem desejo deitar meu corpo
Sem piedade, sem pressa, sem palavras prontas para viagem?
Quando a manhã chegar, então eu a amarei
Por não ter dito nada a não ser com seus olhos.

8.2.02

Cinqüenta anos de Elizabeth II na Inglaterra. Meio século de total falta de carisma nesses Windsors, dos quais a gente só se lembra nos tablóides. Que saudades da Elizabeth I, a última Tudor, filha de Henrique VIII e Ana Bolena, mestra na diplomacia e capaz de discursos inspiradores como este de 1588, quando a armada de Filipe II de Espanha ameaçava a Inglaterra e ela se dirigiu aos soldados em Tilbury (Essex):

"My loving people,

We have been persuaded by some that are careful of our safety, to take heed how we commit our selves to armed multitudes, for fear of treachery; but I assure you I do not desire to live to distrust my faithful and loving people. Let tyrants fear, I have always so behaved myself that, under God, I have placed my chiefest strength and safeguard in the loyal hearts and good-will of my subjects; and therefore I am come amongst you, as you see, at this time, not for my recreation and disport, but being resolved, in the midst and heat of the battle, to live and die amongst you all; to lay down for my God, and for my kingdom, and my people, my honour and my blood, even in the dust. I know I have the body but of a weak and feeble woman; but I have the heart and stomach of a king, and of a king of England too, and think foul scorn that Parma or Spain, or any prince of Europe, should dare to invade the borders of my realm; to which rather than any dishonour shall grow by me, I myself will take up arms, I myself will be your general, judge, and rewarder of every one of your virtues in the field. I know already, for your forwardness you have deserved rewards and crowns; and We do assure you in the word of a prince, they shall be duly paid you. In the mean time, my lieutenant general shall be in my stead, than whom never prince commanded a more noble or worthy subject; not doubting but by your obedience to my general, by your concord in the camp, and your valour in the field, we shall shortly have a famous victory over those enemies of my God, of my kingdom, and of my people."

7.2.02

Centésimo de segundo

Um eco explodiu dentro de mim
Desdobrou-se em milhões de estilhaços
Enquanto o sangue jorrava por complexos freudianos,
Atos falhos, esforços de guerra e
Teorias antropoeconossociológicas
(Lógicas...)

Não prescindi de uma filosofada
Oh, que tal um poema épico
Sobre um buraco sem fundo?
Um eco explodiu
E eu tive de lamber o sal
E engolir a carga de minha esferográfica

A era atômica começou em minhas vísceras.

6.2.02

No parque

Um banco de parque
E o sol.
Ah! O sol...
Se enroscando nos braços e pernas
Raios-novelos-de-lã
E o mundo verde.

Sentado ali vejo a vida
Passar por mim apressada.
Ela vai olhando pro chão
E afastando os pedintes
Com um gesto impaciente e mecânico.

Às vezes passa você,
Às vezes meu fantasma,
Às vezes esqueço.

5.2.02

Perder amigos

Perder amigos
É como perder um documento de identidade
Do qual não existe segunda via;
É a nossa foto que está ali,
Sulcada com microinstantes de prazer e dor
-- E ninguém sabe onde está o negativo ou como revelá-lo.
Em nossa assinatura se escondem gotículas de sangue e paixão,
E na filiação está escrito esperança e lealdade em ouro
Ou talvez ouro de tolo.
Perder amigos é perder uma fatia de alma esburacada
Pelos dias que roem nossas convicções.
Dize-me quantos amigos perdeste
E eu te direi o quanto envelheceste.
A praia

Verdes ondas de ti
atravessam minha íris exposta à brisa;
aconchegam-se em minha retina
e lá provocam estranhos delírios
como se um mar de absinto fossem.

Devagar transformo a macia folha
num pequeno labirinto de sonhos
E o sal na borda da taça
faz nosso beijo mais ardente.

Dura tudo algumas dezenas de segundos
e então tu ris, tão desvairadamente linda
que as marés de ti me prendem e arrastam
para o útero do oceano.

3.2.02

Para rir: o começo do terceiro ato de "An Ideal Husband", de Wilde. Filmado recentemente com o Rupert Everett no papel do Lord Goring:

"SCENE: The Library in Lord Goring's house. An Adam room. On the right is the door leading into the hall. On the left, the door of the smoking-room. A pair of folding doors at the back open into the drawing-room. The fire is lit. Phipps, the butler, is arranging some newspapers on the writing-table. The distinction of Phipps is his impassivity. He has been termed by enthusiasts the Ideal Butler. The Sphinx is not so incommunicable. He is a mask with a manner. Of his intellectual or emotional life, history knows nothing. He represents the dominance of form.
Enter LORD GORING in evening dress with a buttonhole. He is wearing a silk hat and Inverness cape. White-gloved, he carries a Louis Seize cane. His are all the delicate fopperies of Fashion. One sees that he stands in immediate relation to modern life, makes it indeed, and so masters it. He is the first well-dressed philosopher in the history of thought.


LORD GORING:
Got my second buttonhole for me, Phipps?
PHIPPS:
Yes, my lord. [(Takes his hat, cane, and cape, and presents new buttonhole on salver.)]
LORD GORING:
Rather distinguished thing, Phipps. I am the only person of the smallest importance in London at present who wears a buttonhole.
PHIPPS:
Yes, my lord. I have observed that.
LORD GORING:
[(taking out old buttonhole.)] You see, Phipps, Fashion is what one wears oneself. What is unfashionable is what other people wear.
PHIPPS:
Yes, my lord.
LORD GORING:
Just as vulgarity is simply the conduct of other people.
PHIPPS:
Yes, my lord.
LORD GORING:
[(putting in a new buttonhole.)] And falsehoods the truths of other people.
PHIPPS:
Yes, my lord.
LORD GORING:
Other people are quite dreadful. The only possible society is oneself.
PHIPPS:
Yes, my lord.
LORD GORING:
To love oneself is the beginning of a lifelong romance, Phipps.
PHIPPS:
Yes, my lord.
LORD GORING:
[(looking at himself in the glass.)] Don't think I quite like this buttonhole, Phipps. Makes me look a little too old. Makes me almost in the prime of life, eh, Phipps?
PHIPPS:
I don't observe any alteration in your lordship's appearance.
LORD GORING:
You don't, Phipps?
PHIPPS:
No, my lord.
LORD GORING:
I am not quite sure. For the future a more trivial buttonhole, Phipps, on Thursday evenings."

2.2.02

A que jamais será olvidada

A tal ponto cheguei de convulsão
Que a catarse consumou-se
O poema não me é mais sincero
Pois devia exalar dessa saliva incandescente.

Ele agora paira implacável
Escorrendo dessas pérolas loucas
De um castanho-escuro avassalador
E teus milhões de quedas negras d'água
Vêm desabar no meu secular litoral dourado
E a dor mais desejada vem subindo
Prelúdio da força que arrebenta
Veias e artérias.

1.2.02

Conversa com um dândi

"Por que não posso escrever poesia como esta?", perguntou o dândi,
ao ouvir o poema de Lenore,
E alguém respondeu,
É porque um poeta acredita, e você não.
Um poeta põe sua fé em coisas como
Um meio sorriso
Uma lágrima descendo uma rosa na bruma
Uma tempestade no canal da alma
Um filete de sangue caindo de um beijo longo e silente
Estrelas despejadas sobre um leito de amor e desespero
Uma criança num sono agitado
Amigos suicidas em becos e poços escuros.

Um dândi põe sua fé na estante
-- E em seu lugar escolhe com cuidado
Uma flor apodrecida para sua lapela.

Assim falou alguém, e riu,
E o dândi recostou-se em silêncio.