6.3.03

Se você ainda não viu "As Horas", não aconselho a leitura deste post. Mas se já viu, leia e diga se concorda.

Fui ver "As horas" no domingo. Estou até hoje maravilhado e perturbado. O filme é sublime e letal em sua beleza. As três atrizes -- Nicole Kidman, Julianne Moore e Meryl Streep -- dão um show, com destaque para as duas primeiras. O olhar de Kidman como Virginia Woolf hipnotiza o espectador desde as primeiras cenas; as sutilezas de sua mente fulgurante e ao mesmo tempo turva se refletem em cada gesto, do fumar um cigarro à escolha nervosa de uma caneta. O desespero quieto e ordeiro de seu marido, Leonard Woolf, interpretado por Stephen Dillane, se opõe à liberdade, à anarquia espiritual de Virginia, simbolizada, entre outras coisas, pelas páginas do manuscrito de "Mrs. Dalloway" espalhadas pelo chão do quarto. A sombra da morte permeia as três histórias contadas, e, embora em certo ponto Virginia diga ao marido que alguém tem de morrer em sua ficção para que os outros valorizem mais a vida, é a pulsão de morrer (ainda que depois de se ter vivido plenamente) que move os personagens principais, ainda que não o façam todos e alguns usem para a Ceifadora o disfarce da libertação de uma situação. É arrepiante o momento em que Leonard pergunta a Virginia quem vai morrer na história e ela responde "the poet, the visionary", ao mesmo tempo se referindo a um personagem e a si mesma, como se soubesse, em 1923, que dezoito anos depois se afogaria numa gélida manhã em Sussex (e talvez soubesse, já que àquela altura tentara se matar duas vezes).
Ah, e Ed Harris rouba absolutamente as duas cenas em que aparece. A música onipresente de Philip Glass torna a fita ainda mais densa.
Há quem diga que o filme foi feito sob medida para ganhar o Oscar (até acho que vai), mas não concordo -- ele realmente deixa marcas e é uma tradução perfeita para aqueles momentos em que achamos que não há saída para nossas vidas (e o mundo, pelo que se vê, está passando por um desses momentos). Entrei no cinema achando que ia derramar algumas lágrimas, mas no fim, foi minha alma que chorou silenciosamente, o coração opresso, tentando bater mais discretamente para que sua angústia não transbordasse. Mas toda essa tristeza leva à contemplação, e é da contemplação que precisamos para perceber, em certas fases da vida, que nem tudo está perdido.

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