30.9.02

Pura aflição

Nós estamos agora nos braços de outros
Mas nos pertencemos --
tudo em nossos corpos gritou tal constatação
na última boêmia desvairada.

Ai de mim que sofro só de olhar tua beleza
E por saber que não poderei ser teu um dia.
Seu olhar-lâmina traspassa meu ser com tamanha eficácia
que sei que morrerei de amar ao primeiro beijo em tua boca.
"Louco (adj.): afetado por um alto grau de independência intelectual."

(Ambrose Bierce)

28.9.02

O testamento do poeta
(encontrado em sua escrivaninha numa tarde outonal, enquanto ele dormia)

"Que depois de minha morte não a deixem só. Que se faça para ela uma festa em sua honra todo dia 2 de janeiro, que foi quando a conheci. Porque ela é a mulher que me faz rir e me faz chorar; ela é a mulher que destrói todas as minhas certezas; que conta histórias de sua alma para me despertar.
Que ela beba e coma só as coisas de que mais goste; que dance com seus melhores amigos, namorados e amantes; enfim, que tenha uma noite impecável. Porque eis nela a essência absoluta do feminino combinada com a franqueza masculina, mistura a que nenhum homem pode ficar indiferente. Os homens podem encontrar muitas mulheres em suas vidas -- com algumas casar e tentar constituir família, com outras simplesmente saciar a sede, com outras ainda refinar o cérebro. Mas só existe uma capaz de corroer nossos alicerces a cada encontro; só uma é capaz de realmente nos levar à loucura com um olhar (e de nos fazer gostar mais dela exatamente por isso).
Que não falte nada a ela; que tentem fazê-la feliz depois de minha partida (embora eu saiba que isso é impossivel, por sua própria natureza). Porque eu a amei mais do que a mim; porque sua alma é linda na sua imperfeição; porque tudo o que ela faz pode ser traduzido em verso.
Ela é tudo que importa."

27.9.02

Insônia

André Machado e Alessandra Archer

Ele teve um sonho com ela. Um sonho perturbador. Estavam os dois numa praia deserta, ao crepúsculo. Ela em seu colo, lânguida; latas de cerveja em volta. Um cigarro pendendo da boca dele. Tocava um blues acústico, vindo do nada (não havia qualquer aparelho visível por perto).

Ela pegou o cigarro da mão dele, deu o trago final e o jogou fora. Depois beijou-o. Nesse exato momento foram atacados por um bando de gaivotas de todas as cores do arco-íris e a cena mudou. Estavam em outra praia, mas era noite e o cheiro de detritos despejados no mar tornava o ar quase irrespirável. A areia parecia um lodo. Ela usava agora um longo vestido diáfano e ele, um smoking amarrotado. Um pier atrás deles levava a um velho hotel, onde se ouviam os acordes de uma orquestra. Ele estava enjoado, sentia vontade de vomitar. Ela parecia secar algumas lágrimas. Seu companheiro tentou balbuciar algumas palavras, mas ela deu dois passos e esbofeteou-o com violência. Então apareceu um terceiro personagem. Um gato preto gigantesco.

Durante um dia inteiro estas visões ocuparam seus pensamentos. Não fora um pesadelo, embora tivesse todos os ingredientes, era apenas um sonho incômodo. Num papel, anotou os detalhes que ia lembrando. Havia uma irritação crescente e indomável por pensar nela, por sentir ainda seu cheiro, por ainda a querer, por ainda senti-la por perto, por ter guardado suas fotos e bilhetinhos, por ainda não ter encontrado outro nome mais belo do que Clara pra pensar. Não encontrava um meio de afastar-se dela. Em cada esquina de sua cidade, uma lembrança.

Intuía uma vontade irrefletida de escapar por alguma escada, por algum vão que houvesse dentro de si mesmo, uma porta dos fundos que o levasse para longe do sentimento que não conseguia aniquilar -- e que era amar uma mulher e sentir saudade. Daí começaram os primeiros flashes de sua insônia, que os sonhos invadiram e que já dura dois anos.

Noites em claro-clara.



Ontem, no ChoppGol de Nikiti, encontrei umas figuras que não via há milênios. Minha velha amiga Denise com seu marido, Ita, e até o irmão de um ex-namorado de minha irmã, em cuja casa passei um reveillon hilário há mais de dez anos . O show com a banda, recém-batizada de Swing Rio, foi animado, embora eu estivesse meio cansado (a primeira semana de volta das férias é sempre assim, né?). Espero estar com a pilha toda na próxima semana.

25.9.02

"It is thy mouth that I desire, Iokanaan. Thy mouth is like a band of scarlet on a tower of ivory. It is like a pomegranate cut in twain with a knife of ivory. The pomegranate flowers that blossom in the gardens of Tyre, and are redder than roses, are not so red. The red blasts of trumpets that herald the approach of kings, and make afraid the enemy, are not so red. Thy mouth is redder than the feet of those who tread the wine in the wine-press. It is redder than the feet of the doves who inhabit the temples and are fed by the priests. It is redder than the feet of him who cometh from a forest where he hath slain a lion, and seen gilded tigers. Thy mouth is like a branch of coral that fishers have found in the twilight of the sea, the coral that they keep for the kings!…It is like the vermilion that the Moabites find in the mines of Moab,° the vermilion that the kings take from them. It is like the bow of the King of the Persians, that is painted with vermilion, and is tipped with coral. There is nothing in the world so red as thy mouth.… Suffer me to kiss thy mouth."

(Salomé, Oscar Wilde, 1891)

24.9.02

Chove

Chove em meu cérebro
E o fog entre os neurônios
me causa amnésia de ti.

Quem és?
Em vão te busquei,
atormentado,
entre os podres postigos
do templo fantasma.

Como de hábito,
talvez apenas te encontre
em outro século,
quando não mais me olharás
com aquele desejo incontrolável e trêmulo.
Santana e a mágica

A guitarra de Santana soou,
machucando meu coração
e despertando minhas mãos e pés.
Num átimo, levantei-me:
"Vem!"
E tu vieste, e dançamos,
E ninguém mais importava.

Discretamente, ali, eu te amei
Quatro minutos de paixão irresponsável
ao som de seis cordas, criadoras implacáveis de vida
E as constelações sumiram, e o universo nos invejou.

Foi uma doce mágica no interstício do tempo.

23.9.02

Uaaaah ;-)))
Estou de volta, moçada, depois de três semanas de preguiça absoluta. Passei uma semana em Teresópolis e outras duas em casa. Em nennhum dos dois lugares fiz algo mais do que me tornar parte da paisagem e sonhar muito, dormindo ou acordado. O friozinho do fim de semana tornou ainda mais difícil sair da cama hoje. Mas já estou pronto para outra, com o gás todo.
No campo musical, porém, não fiquei parado. Continuo tocando com o Hélcio (agora em duo) no ChoppGol de Vila Isabel às quartas, no de Charitas (Nikiti) com a banda toda (que foi batizada de Swing Rio) às quintas, e esta sexta o trio vai estrear no restaurante HumGrau, na praia de Charitas.
Logo haverá novos poemas por aqui.