27.9.02

Insônia

André Machado e Alessandra Archer

Ele teve um sonho com ela. Um sonho perturbador. Estavam os dois numa praia deserta, ao crepúsculo. Ela em seu colo, lânguida; latas de cerveja em volta. Um cigarro pendendo da boca dele. Tocava um blues acústico, vindo do nada (não havia qualquer aparelho visível por perto).

Ela pegou o cigarro da mão dele, deu o trago final e o jogou fora. Depois beijou-o. Nesse exato momento foram atacados por um bando de gaivotas de todas as cores do arco-íris e a cena mudou. Estavam em outra praia, mas era noite e o cheiro de detritos despejados no mar tornava o ar quase irrespirável. A areia parecia um lodo. Ela usava agora um longo vestido diáfano e ele, um smoking amarrotado. Um pier atrás deles levava a um velho hotel, onde se ouviam os acordes de uma orquestra. Ele estava enjoado, sentia vontade de vomitar. Ela parecia secar algumas lágrimas. Seu companheiro tentou balbuciar algumas palavras, mas ela deu dois passos e esbofeteou-o com violência. Então apareceu um terceiro personagem. Um gato preto gigantesco.

Durante um dia inteiro estas visões ocuparam seus pensamentos. Não fora um pesadelo, embora tivesse todos os ingredientes, era apenas um sonho incômodo. Num papel, anotou os detalhes que ia lembrando. Havia uma irritação crescente e indomável por pensar nela, por sentir ainda seu cheiro, por ainda a querer, por ainda senti-la por perto, por ter guardado suas fotos e bilhetinhos, por ainda não ter encontrado outro nome mais belo do que Clara pra pensar. Não encontrava um meio de afastar-se dela. Em cada esquina de sua cidade, uma lembrança.

Intuía uma vontade irrefletida de escapar por alguma escada, por algum vão que houvesse dentro de si mesmo, uma porta dos fundos que o levasse para longe do sentimento que não conseguia aniquilar -- e que era amar uma mulher e sentir saudade. Daí começaram os primeiros flashes de sua insônia, que os sonhos invadiram e que já dura dois anos.

Noites em claro-clara.



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