O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO XIV
Ele obedeceu e ela sentou-se a seu lado, de repente séria. -- Você já ouviu falar de terapia de regressão?
-- Aquele negócio de vidas passadas, etc e tal...
-- Isso aí.
Ela fez uma pausa, então prosseguiu:
-- Bom, faz uns meses eu tive uns problemas pessoais. Terminei um longo namoro que me deixou mal pacas, entrei em depressão, parei de comer... você percebe o quadro. Como moro sozinha, resolvi chamar uma amiga para me fazer companhia. Fiz análise, tomei uns remedinhos e até melhorei um pouco, mas não estava satisfeita e a depressão, quando baixava, vinha como o martelo de Thor. Então, essa minha amiga, que é toda esotérica, sugeriu que eu fizesse uma regressão. Ela disse que conhecia um terapeuta sério, que ajudara outras pessoas, e que não custava nada tentar.
Jon assentiu.
-- Enfim, resolvi ir até lá e ver qual era. Conversei com o terapeuta, um certo Augusto Mendes, e ele me pareceu mesmo um bom sujeito. Deitei-me num divã e a sessão começou. Através de sugestão hipnótica, ele me fez primeiro relaxar e depois me induziu a uma espécie de estase. Não sei direito o que aconteceu a princípio, porque a gente meio que fica num limbo escuro e confortável. Até que olhei para meus pés descalços e me perguntei: "mas como posso estar descalça se calçava tênis há um segundo?" Aí vi a grama sob os pés. E a barra de um vestido rústico, bem sujo. Eu carregava uma cesta de frutas silvestres e podia sentir o mau cheiro de meu próprio corpo, que não devia ver um banho há milênios. De repente o campo visual se abriu e me achei no meio de um vasto pomar, onde várias outras mulheres vestidas como eu colhiam bagas. O sol baixava e ao longe via-se um castelo medieval -- novinho em folha, diga-se de passagem. E tive certeza: estava no ano de 1348. Na França.
31.5.02
30.5.02
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO XIII
No encontro seguinte, Jon teve uma sensação estranha.
O corredor escuro agora lhe pareceu um labirinto. De repente, ele não sabia mais qual era a porta do 902. No elevador cruzara com um sujeito estranho, alto, moreno, barbudo, de óculos. O homem entrara esbaforido à medida que ele saía para o corredor, e, estranhamente, parecia não vir de lugar nenhum do corredor. Parecia ter saído, sabe-se lá, de dentro da caixa da mangueira de incêndio. Exalava um bafo de cerveja e levava uma edição gasta de “O Túnel”, de Ernesto Sábato. Os olhos eram negros e angustiados; ele mediu Jon de alto a baixo enquanto se postava numa posição curvada e desajeitada, com a mão que segurava o livro pousada, torta, sobre a cintura.
Jon sentiu arrepios naquela fração de segundo.
A porta do apartamento estava entreaberta. Ele entrou e a primeira coisa que ouviu foi a risada cristalina de Daniela. Ela estava ao telefone, aparentemente conversando com uma amiga, já que falava dos atributos físicos de um homem. Desligou pouco depois e voltou-se para Jon.
-- Oi, querido -- Abraçou-o.
-- Tudo bem? -- Depois de um beijo e uma pausa: -- Tem umas figuras esquisitas nesse seu prédio, não? Acabei de ver um sujeito barbudo que pareceu surgir do nada aí fora...
Ela deu de ombros.
-- É, são os efeitos colaterais da minha experiência.
-- É a tal viagem de que você me falou?
-- É, mais ou menos. Senta aqui -- apontou para o sofá.
CAPÍTULO XIII
No encontro seguinte, Jon teve uma sensação estranha.
O corredor escuro agora lhe pareceu um labirinto. De repente, ele não sabia mais qual era a porta do 902. No elevador cruzara com um sujeito estranho, alto, moreno, barbudo, de óculos. O homem entrara esbaforido à medida que ele saía para o corredor, e, estranhamente, parecia não vir de lugar nenhum do corredor. Parecia ter saído, sabe-se lá, de dentro da caixa da mangueira de incêndio. Exalava um bafo de cerveja e levava uma edição gasta de “O Túnel”, de Ernesto Sábato. Os olhos eram negros e angustiados; ele mediu Jon de alto a baixo enquanto se postava numa posição curvada e desajeitada, com a mão que segurava o livro pousada, torta, sobre a cintura.
Jon sentiu arrepios naquela fração de segundo.
A porta do apartamento estava entreaberta. Ele entrou e a primeira coisa que ouviu foi a risada cristalina de Daniela. Ela estava ao telefone, aparentemente conversando com uma amiga, já que falava dos atributos físicos de um homem. Desligou pouco depois e voltou-se para Jon.
-- Oi, querido -- Abraçou-o.
-- Tudo bem? -- Depois de um beijo e uma pausa: -- Tem umas figuras esquisitas nesse seu prédio, não? Acabei de ver um sujeito barbudo que pareceu surgir do nada aí fora...
Ela deu de ombros.
-- É, são os efeitos colaterais da minha experiência.
-- É a tal viagem de que você me falou?
-- É, mais ou menos. Senta aqui -- apontou para o sofá.
27.5.02
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO XII
Sentaram-se num canto da padaria e conversaram. Ela revelou-lhe que era estudante de moda, e ele, mais apaziguado depois de uma xícara de café, riu, dizendo que era a última coisa que a imaginava fazendo. Ela replicou dizendo que desenhar a relaxava, que havia técnicas malucas para isso, como tentar fazê-lo com o lado direito do cérebro ("seja lá o que for isso", pensou ele com seus botões), além de aulas de história da arte. Ele falou um pouco de sua vida de jornalista, de suas insatisfações com os longos hiatos entre os poucos textos literários que conseguia escrever.
-- Aquele velho cego que mora com você é mesmo seu pai? -- perguntou Jon após uma pausa.
-- Que velho?
-- Como é mesmo o nome? Joaquim, mas pronunciado de forma meio gutural...
-- Ah, Joachim. Não, ele não é meu pai. Diz que é para não assustar as pessoas. É mais... um amigo.
-- Não é perigoso ele andar sozinho por aí assim?
-- O "por aí" onde ele anda é bastante seguro. E lá ele enxerga bem.
Jon não entendeu e ficou olhando para ela, que percebeu.
-- Vou explicar depois, tá? Tem que ser aos poucos.
Ele ficou quieto um tempo e perguntou se, se quisesse beijá-la, também tinha de ser aos poucos. Ela riu, deu a volta na mesa, sentou-se a seu lado e beijou sua boca. Ele fechou os olhos e ficou recordando o corpo branco, perfeito, que vira no apartamento, combinando de modo tão sensacional com o gostinho de leite e chocolate na boca de Daniela que chegou a ficar tonto e esqueceu por alguns segundos de correr atrás da língua da fêmea que acariciava seu palato.
-- Preciso ir nessa -- disse ela, ofegando um pouco depois do beijo.
-- Quero fazer amor com você. Direito, não como aquela loucura no parque -- pediu ele.
-- Mas daquele jeito é que é bom... -- Os olhos do Desejo faiscaram. -- Tudo bem, mas depois. Agora não dá.
-- Tudo bem.
-- Não fique amuado, tá bom? Quero que você faça uma viagem comigo.
-- Sério?
-- Sério. A gente se fala amanhã. Me liga?
Ele assentiu. Ela se foi, linda e despudorada pela manhã carioca.
CAPÍTULO XII
Sentaram-se num canto da padaria e conversaram. Ela revelou-lhe que era estudante de moda, e ele, mais apaziguado depois de uma xícara de café, riu, dizendo que era a última coisa que a imaginava fazendo. Ela replicou dizendo que desenhar a relaxava, que havia técnicas malucas para isso, como tentar fazê-lo com o lado direito do cérebro ("seja lá o que for isso", pensou ele com seus botões), além de aulas de história da arte. Ele falou um pouco de sua vida de jornalista, de suas insatisfações com os longos hiatos entre os poucos textos literários que conseguia escrever.
-- Aquele velho cego que mora com você é mesmo seu pai? -- perguntou Jon após uma pausa.
-- Que velho?
-- Como é mesmo o nome? Joaquim, mas pronunciado de forma meio gutural...
-- Ah, Joachim. Não, ele não é meu pai. Diz que é para não assustar as pessoas. É mais... um amigo.
-- Não é perigoso ele andar sozinho por aí assim?
-- O "por aí" onde ele anda é bastante seguro. E lá ele enxerga bem.
Jon não entendeu e ficou olhando para ela, que percebeu.
-- Vou explicar depois, tá? Tem que ser aos poucos.
Ele ficou quieto um tempo e perguntou se, se quisesse beijá-la, também tinha de ser aos poucos. Ela riu, deu a volta na mesa, sentou-se a seu lado e beijou sua boca. Ele fechou os olhos e ficou recordando o corpo branco, perfeito, que vira no apartamento, combinando de modo tão sensacional com o gostinho de leite e chocolate na boca de Daniela que chegou a ficar tonto e esqueceu por alguns segundos de correr atrás da língua da fêmea que acariciava seu palato.
-- Preciso ir nessa -- disse ela, ofegando um pouco depois do beijo.
-- Quero fazer amor com você. Direito, não como aquela loucura no parque -- pediu ele.
-- Mas daquele jeito é que é bom... -- Os olhos do Desejo faiscaram. -- Tudo bem, mas depois. Agora não dá.
-- Tudo bem.
-- Não fique amuado, tá bom? Quero que você faça uma viagem comigo.
-- Sério?
-- Sério. A gente se fala amanhã. Me liga?
Ele assentiu. Ela se foi, linda e despudorada pela manhã carioca.
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO XI
Entrou no apartamento da General Glicério tremendo de frio com aquele vento encanado. Mas também podia ser medo.
-- Daniela?
Encontrara a porta entreaberta. Na sala, ocupada por um singelo sofá marrom, não havia ninguém.
Silêncio.
-- Olá?
Então ouviu um leve ressonar vindo da primeira porta à direita. Pé ante pé, foi até o umbral e olhou para dentro do aposento. Sobre um colchonete verde corroído, mal coberto por um lençol estampado, jazia Daniela. Estava completamente nua e tinha uma navalha na mão. Mas o que fez Jon sufocar um grito foi a enorme mancha vermelha espalhada sobre os seios e o pescoço. Ela se matara? Se havia tentado, não conseguira, pois ainda podia ver o peito subindo e descendo. Devia estar agonizando.
Correu até o telefone e discou atabalhoadamente para a polícia.
-- Alô, socorro, quero comunicar... -- meio que berrou.
-- Calma, estou aqui.
Aqueles dedos brancos interromperam a chamada. Ela estava lá, sorrindo, toda cheia de sangue, ainda segurando a navalha. Ele deu um grito de pavor e caiu sentado no sofá.
Ela riu.
-- Calma, não vou machucar você. Não é sangue, veja, é só ketchup. -- Passou a mão no seio esquerdo e estendeu o dedo para que ele cheirasse. -- E eu estava me depilando na cama quando bateu um sono irresistível.
O ketchup fora resultado de uma noite de amor que misturara pizza e vinho, explicou ela. Jon, a essa altura tremendo como uma vara verde, sem poder se controlar, não teve reação. Logo depois mordeu o lábio de ciúme.
"Mas ciúme de quê, seu idiota?", perguntou-se.
-- Vou tomar banho, espere um pouco.
Quinze minutos depois, ela voltou, envolta num vestido diáfano, rosa e branco. Convidou-o para tomar café.
CAPÍTULO XI
Entrou no apartamento da General Glicério tremendo de frio com aquele vento encanado. Mas também podia ser medo.
-- Daniela?
Encontrara a porta entreaberta. Na sala, ocupada por um singelo sofá marrom, não havia ninguém.
Silêncio.
-- Olá?
Então ouviu um leve ressonar vindo da primeira porta à direita. Pé ante pé, foi até o umbral e olhou para dentro do aposento. Sobre um colchonete verde corroído, mal coberto por um lençol estampado, jazia Daniela. Estava completamente nua e tinha uma navalha na mão. Mas o que fez Jon sufocar um grito foi a enorme mancha vermelha espalhada sobre os seios e o pescoço. Ela se matara? Se havia tentado, não conseguira, pois ainda podia ver o peito subindo e descendo. Devia estar agonizando.
Correu até o telefone e discou atabalhoadamente para a polícia.
-- Alô, socorro, quero comunicar... -- meio que berrou.
-- Calma, estou aqui.
Aqueles dedos brancos interromperam a chamada. Ela estava lá, sorrindo, toda cheia de sangue, ainda segurando a navalha. Ele deu um grito de pavor e caiu sentado no sofá.
Ela riu.
-- Calma, não vou machucar você. Não é sangue, veja, é só ketchup. -- Passou a mão no seio esquerdo e estendeu o dedo para que ele cheirasse. -- E eu estava me depilando na cama quando bateu um sono irresistível.
O ketchup fora resultado de uma noite de amor que misturara pizza e vinho, explicou ela. Jon, a essa altura tremendo como uma vara verde, sem poder se controlar, não teve reação. Logo depois mordeu o lábio de ciúme.
"Mas ciúme de quê, seu idiota?", perguntou-se.
-- Vou tomar banho, espere um pouco.
Quinze minutos depois, ela voltou, envolta num vestido diáfano, rosa e branco. Convidou-o para tomar café.
Voltei, moçada! É bom estar na Terra Brasilis de novo, estava com saudades daqui. E de blogar!!! Ôba!!
Bem, vamos mandar mais alguns capítulos da blognovela para compensar a ausência da semana passada. Prontos? Tínhamos deixado o pobre Jon sozinho no meio da Rua do Catete no capítulo anterior. E agora...
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO X
Uma carta chegou até o jornal duas semanas depois. Um e-mail.
"Caro jovem e indefeso,
I took a fancy on you. Você é um pequeno deus à sua maneira, com todos os caprichos à mostra, em todos os seus gestos. Eu me enganei, você tem todo o potencial do conde, mas não deve viver para sempre. Uma vida efêmera condiz mais com sua compleição. Venha ver-me amanhã. Estou só. Escolha a hora."
Bem, vamos mandar mais alguns capítulos da blognovela para compensar a ausência da semana passada. Prontos? Tínhamos deixado o pobre Jon sozinho no meio da Rua do Catete no capítulo anterior. E agora...
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO X
Uma carta chegou até o jornal duas semanas depois. Um e-mail.
"Caro jovem e indefeso,
I took a fancy on you. Você é um pequeno deus à sua maneira, com todos os caprichos à mostra, em todos os seus gestos. Eu me enganei, você tem todo o potencial do conde, mas não deve viver para sempre. Uma vida efêmera condiz mais com sua compleição. Venha ver-me amanhã. Estou só. Escolha a hora."
20.5.02
Aos amigos leitores deste blog:
Nos proximos dias nao poderei atualizar a blognovela, pois estou viajando a trabalho. Participo da Borland Conference 2002 em Anaheim, California (nao por acaso estou sem acentos -- na volta conserto este post, ok? ;-)), o paraiso dos programadores de todo o mundo. O keynote principal foi ontem de noite, com o GG (grande guru) David I dando uma de James Bond na entrada e o CEO Dale Fuller distribuindo camisetas com um canhao de ar comprimido para a plateia... Muito divertido. Aqui se fala do futuro das linguagens, sistemas e plataformas, num movimento que pode mudar a cara da web (e talvez da computacao).
Na volta conto mais. Perdoem-me a ausencia. Dia 27 estarei de volta ao bloguniverse. Se der tempo, dou mais uma blogada no meio da semana, entre os montes de conferencias....
Nos proximos dias nao poderei atualizar a blognovela, pois estou viajando a trabalho. Participo da Borland Conference 2002 em Anaheim, California (nao por acaso estou sem acentos -- na volta conserto este post, ok? ;-)), o paraiso dos programadores de todo o mundo. O keynote principal foi ontem de noite, com o GG (grande guru) David I dando uma de James Bond na entrada e o CEO Dale Fuller distribuindo camisetas com um canhao de ar comprimido para a plateia... Muito divertido. Aqui se fala do futuro das linguagens, sistemas e plataformas, num movimento que pode mudar a cara da web (e talvez da computacao).
Na volta conto mais. Perdoem-me a ausencia. Dia 27 estarei de volta ao bloguniverse. Se der tempo, dou mais uma blogada no meio da semana, entre os montes de conferencias....
16.5.02
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO IX
Foi o beijo mais incendiário de toda a sua vida. Todos os seus poros explodiram. Ele se sentiu fraco, sitiado, feminino. Todo o seu ser era se entregar diante daquele Poder. Todo o seu ser era ceder, condescender, ajoelhar-se e tiritar no chão de uma igreja gótica e compreender sua pequenez diante dos imensos arcobotantes. O corpo todo menos um membro ficou mole e volátil. Ele era os grãos da terra úmida, as folhas crocantes reunidas à revelia pelo vento, os jamelões amassados e perfumados no calçamento antigo.
E então, quando ela lhe sussurrou "você vai sobreviver", ele gozou, gozou, gozou, gozou até desmaiar. Foi acordado pelos guardas do parque, que o expulsaram sem cerimônia. Já eram oito e meia da noite.
Ele ficou só no meio do barulho e da sujeira da Rua do Catete.
CAPÍTULO IX
Foi o beijo mais incendiário de toda a sua vida. Todos os seus poros explodiram. Ele se sentiu fraco, sitiado, feminino. Todo o seu ser era se entregar diante daquele Poder. Todo o seu ser era ceder, condescender, ajoelhar-se e tiritar no chão de uma igreja gótica e compreender sua pequenez diante dos imensos arcobotantes. O corpo todo menos um membro ficou mole e volátil. Ele era os grãos da terra úmida, as folhas crocantes reunidas à revelia pelo vento, os jamelões amassados e perfumados no calçamento antigo.
E então, quando ela lhe sussurrou "você vai sobreviver", ele gozou, gozou, gozou, gozou até desmaiar. Foi acordado pelos guardas do parque, que o expulsaram sem cerimônia. Já eram oito e meia da noite.
Ele ficou só no meio do barulho e da sujeira da Rua do Catete.
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO VIII
Ele sentou-se no banco junto aos querubins às quatro horas. Às cinco, imaginou se ela encontrara o bilhete. Às cinco e quarenta, cochilou.
Às seis e dez acordou e a primeira coisa que viu foi um par de pernas longilíneas e muito brancas escapando de uma saia turquesa. Quando levantou os olhos, viu Daniela fitando-o com um sorriso francamente divertido nos lábios. Na mão direita, segurava o bilhete.
-- "Venha me assustar mais um pouco. Jon". Gostei.
-- Quem é você, afinal? -- perguntou ele, mais para si mesmo do que para ela.
-- Sou quem você quiser.
-- Você pode ser Mônica?
-- Não gosto do nome. Prefiro Ingrid.
-- Preciso dizer a Mônica algo que não tenho coragem de dizer a ela.
-- Diga.
-- Mônica, eu estou perdidamente apaixonado por você e pelo seu corpo e quero fazer amor com você beijar você todinha até você morrer de prazer me abrace e não me solte nunca mais e aaahhhh....
* * *
Acordou com Daniela limpando o filete de baba que lhe escorria pelo peito. Olhava-o gravemente. Ele se sentou ereto, envergonhado. Ela deixou cair o lenço de papel. Ele tremeu. Ela sentou-se. Ele não se mexeu. Ela tomou-lhe a face nas mãos. Ele sentiu-se um perfeito idiota, um peso morto, quando ela inclinou seu rosto para a direita e beijou sua boca seca.
CAPÍTULO VIII
Ele sentou-se no banco junto aos querubins às quatro horas. Às cinco, imaginou se ela encontrara o bilhete. Às cinco e quarenta, cochilou.
Às seis e dez acordou e a primeira coisa que viu foi um par de pernas longilíneas e muito brancas escapando de uma saia turquesa. Quando levantou os olhos, viu Daniela fitando-o com um sorriso francamente divertido nos lábios. Na mão direita, segurava o bilhete.
-- "Venha me assustar mais um pouco. Jon". Gostei.
-- Quem é você, afinal? -- perguntou ele, mais para si mesmo do que para ela.
-- Sou quem você quiser.
-- Você pode ser Mônica?
-- Não gosto do nome. Prefiro Ingrid.
-- Preciso dizer a Mônica algo que não tenho coragem de dizer a ela.
-- Diga.
-- Mônica, eu estou perdidamente apaixonado por você e pelo seu corpo e quero fazer amor com você beijar você todinha até você morrer de prazer me abrace e não me solte nunca mais e aaahhhh....
* * *
Acordou com Daniela limpando o filete de baba que lhe escorria pelo peito. Olhava-o gravemente. Ele se sentou ereto, envergonhado. Ela deixou cair o lenço de papel. Ele tremeu. Ela sentou-se. Ele não se mexeu. Ela tomou-lhe a face nas mãos. Ele sentiu-se um perfeito idiota, um peso morto, quando ela inclinou seu rosto para a direita e beijou sua boca seca.
15.5.02
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO VII
Rua General Glicério, 43. Um prédio antigo. Apartamento 902. O porteiro deu um mole, ele entrou. Elevador com porta pantográfica, assustador. Corredor às escuras. Frio. O vento da tarde chiava por entre basculantes enferrujados.
A campainha pareceu não funcionar. Ele bateu então na porta.
Um toc-toc veio caminhando hesitante para a porta. Mais alguns segundos e a chave começou a ser girada; de repente, parou.
-- Quem é? -- Uma voz de homem, rouca.
-- Um amigo de Daniela.
-- Quem?
-- Jon. Vim lhe devolver um livro.
-- Ah.
A chave terminou de girar. Surgiu um cego, segurando uma bengala de madeira bastante gasta. Óculos escuros, sem camisa, uma calça cinza desabotoada sob a barriga. Pele bem clara, cabelos grisalhos já rarefeitos.
-- Boa tarde. Desculpe minha hesitação. O Rio de Janeiro anda violento demais.
-- Não há o que desculpar.
-- Sou Joachim, pai de Daniela. Prazer. Sinto, mas ela saiu.
-- Jon Lord Oliveira. Vim deixar este livro com ela -- Depositou-o nas mãos do velho. -- Tudo bem, posso telefonar depois. Obrigado.
-- Que livro é?
-- É um da Simone de Beauvoir...
-- Ah, o do conde Fosca, não é?
-- Sim, é.
-- Hum. Mais um.
-- Mais um o quê, senhor?
-- Oh, nada, nada. Eu só queria saber quantos anos iria viver o conde (se ele realmente existisse) se conhecesse Daniela.
-- Parece uma questão interessante.
-- Certamente o é. Mas não sei se você vai gostar de conhecer a resposta. Boa tarde.
O velho fechou a porta e Jon ficou parado ali, cismando.
CAPÍTULO VII
Rua General Glicério, 43. Um prédio antigo. Apartamento 902. O porteiro deu um mole, ele entrou. Elevador com porta pantográfica, assustador. Corredor às escuras. Frio. O vento da tarde chiava por entre basculantes enferrujados.
A campainha pareceu não funcionar. Ele bateu então na porta.
Um toc-toc veio caminhando hesitante para a porta. Mais alguns segundos e a chave começou a ser girada; de repente, parou.
-- Quem é? -- Uma voz de homem, rouca.
-- Um amigo de Daniela.
-- Quem?
-- Jon. Vim lhe devolver um livro.
-- Ah.
A chave terminou de girar. Surgiu um cego, segurando uma bengala de madeira bastante gasta. Óculos escuros, sem camisa, uma calça cinza desabotoada sob a barriga. Pele bem clara, cabelos grisalhos já rarefeitos.
-- Boa tarde. Desculpe minha hesitação. O Rio de Janeiro anda violento demais.
-- Não há o que desculpar.
-- Sou Joachim, pai de Daniela. Prazer. Sinto, mas ela saiu.
-- Jon Lord Oliveira. Vim deixar este livro com ela -- Depositou-o nas mãos do velho. -- Tudo bem, posso telefonar depois. Obrigado.
-- Que livro é?
-- É um da Simone de Beauvoir...
-- Ah, o do conde Fosca, não é?
-- Sim, é.
-- Hum. Mais um.
-- Mais um o quê, senhor?
-- Oh, nada, nada. Eu só queria saber quantos anos iria viver o conde (se ele realmente existisse) se conhecesse Daniela.
-- Parece uma questão interessante.
-- Certamente o é. Mas não sei se você vai gostar de conhecer a resposta. Boa tarde.
O velho fechou a porta e Jon ficou parado ali, cismando.
14.5.02
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO VI
Impressionante ver um sujeito com aquele jeito inofensivo operar o computador. O homem se transformava. Era o bit-demônio. E aquele programa, o Back Orifice X, era a última palavra em armas cibernético-bacteriológicas. Silencioso e letal, o programinha transformava no cerne do apocalipse qualquer computador remoto que acessasse. E bastava enviá-lo escondido junto com um screensaver ou piada online. Em pouco mais de vinte minutos, a ficha de Daniela estava piscando na tela.
E Daniela era o Desejo.
Passaram o resto da noite enchendo a cara de cerveja.
As revistas de música ficaram na casa de Jon.
CAPÍTULO VI
Impressionante ver um sujeito com aquele jeito inofensivo operar o computador. O homem se transformava. Era o bit-demônio. E aquele programa, o Back Orifice X, era a última palavra em armas cibernético-bacteriológicas. Silencioso e letal, o programinha transformava no cerne do apocalipse qualquer computador remoto que acessasse. E bastava enviá-lo escondido junto com um screensaver ou piada online. Em pouco mais de vinte minutos, a ficha de Daniela estava piscando na tela.
E Daniela era o Desejo.
Passaram o resto da noite enchendo a cara de cerveja.
As revistas de música ficaram na casa de Jon.
13.5.02
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO V
A redação.
-- Estou pela 12 e pela 14. Anda, pessoal, está tudo atrasado!
-- Zé, não é para mandar a matéria do ibope. Só depois do jornal da TV, certo?
-- "... e está desaparecido há oito horas o helicóptero em que viajava o ator Marat Mello no Amapá..."
-- Puta merda!
-- Olha só o tamanho da matéria, porra. Eles estão sem pauta hoje. Até parece que o sujeito é presidente dos Estados Unidos.
-- O presidente dos Estados Unidos ia adorar estar num helicóptero desaparecido neste momento. Aquele escândalo sexual...
-- Quem pega um flash do Lucimar aqui pra mim? É da reunião do Copom.
-- Já vai.
-- Subi para a internet aquela notinha do descarrilamento.
-- Quantos mortos? 53?
-- Já subiu para 55.
-- Bota na primeira página do Jornafax.
-- Tá.
-- Gente, tô indo. Se o Norberto Carlos morrer, me liguem numa hora humana.
Uma selva de computadores piscando em azul, amarelo, branco, vermelho. O auge do fechamento. Pessoas com caras cansadas ou tristonhas. Editores neuróticos. Café, café, café, cigarros, cigarros, cigarros. Más notícias. O mundo era feito de más notícias. Que imparcialidade que nada. Só as más notícias havia para o jornal. Ou as exóticas.
Jon conhecia aquilo bem. De repente ele avistou Sidney. Figuraça. Óculos, camisa verde quadriculada sobre a camiseta branca, jeans surrados. O que ele gostava nele era o jeito de cientista no jornalista. Só Alexandre Mondorinus, outro porralouca, tinha esse Dom do Desligamento além do Sidney. Mas Mondorinus parecia estar sempre viajando em ácido. Parecia um beatnik. Sidney não. Sidney parecia um professor aloprado. Era muito inteligente, completamente inseguro. Mas adorável.
-- Sidney!
-- Jon? Que faz aqui? Você não está de férias?
-- Cara, preciso de um favor. Você ainda tem o Back Orifice X?
-- Shh. Tenho. Por quê?
-- Cara, descobre o endereço dessa mulher aqui.
-- Tem que descolar o IP do computador da administradora do cartão, mané.
-- Ah, você não consegue isso?
-- Cadê minhas revistas de música?
-- Eu devolvo tudo, prometo. Eu devolvo.
-- Passa lá em casa amanhã. Dez da noite.
-- Valeu.
CAPÍTULO V
A redação.
-- Estou pela 12 e pela 14. Anda, pessoal, está tudo atrasado!
-- Zé, não é para mandar a matéria do ibope. Só depois do jornal da TV, certo?
-- "... e está desaparecido há oito horas o helicóptero em que viajava o ator Marat Mello no Amapá..."
-- Puta merda!
-- Olha só o tamanho da matéria, porra. Eles estão sem pauta hoje. Até parece que o sujeito é presidente dos Estados Unidos.
-- O presidente dos Estados Unidos ia adorar estar num helicóptero desaparecido neste momento. Aquele escândalo sexual...
-- Quem pega um flash do Lucimar aqui pra mim? É da reunião do Copom.
-- Já vai.
-- Subi para a internet aquela notinha do descarrilamento.
-- Quantos mortos? 53?
-- Já subiu para 55.
-- Bota na primeira página do Jornafax.
-- Tá.
-- Gente, tô indo. Se o Norberto Carlos morrer, me liguem numa hora humana.
Uma selva de computadores piscando em azul, amarelo, branco, vermelho. O auge do fechamento. Pessoas com caras cansadas ou tristonhas. Editores neuróticos. Café, café, café, cigarros, cigarros, cigarros. Más notícias. O mundo era feito de más notícias. Que imparcialidade que nada. Só as más notícias havia para o jornal. Ou as exóticas.
Jon conhecia aquilo bem. De repente ele avistou Sidney. Figuraça. Óculos, camisa verde quadriculada sobre a camiseta branca, jeans surrados. O que ele gostava nele era o jeito de cientista no jornalista. Só Alexandre Mondorinus, outro porralouca, tinha esse Dom do Desligamento além do Sidney. Mas Mondorinus parecia estar sempre viajando em ácido. Parecia um beatnik. Sidney não. Sidney parecia um professor aloprado. Era muito inteligente, completamente inseguro. Mas adorável.
-- Sidney!
-- Jon? Que faz aqui? Você não está de férias?
-- Cara, preciso de um favor. Você ainda tem o Back Orifice X?
-- Shh. Tenho. Por quê?
-- Cara, descobre o endereço dessa mulher aqui.
-- Tem que descolar o IP do computador da administradora do cartão, mané.
-- Ah, você não consegue isso?
-- Cadê minhas revistas de música?
-- Eu devolvo tudo, prometo. Eu devolvo.
-- Passa lá em casa amanhã. Dez da noite.
-- Valeu.
12.5.02
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO IV
Foi até a livraria novamente. Uma. Duas. Seis vezes.
Só havia homens andróginos e mulheres ansiosas no local em todas as seis vezes. Os livros pareciam murchos.
Chovia no Parque do Palácio. E ventava, e as folhas molhadas impregnavam o calçamento de um cheiro enjoativo.
E então ele se lembrou de Sidney Kerakgsztejn, na redação.
CAPÍTULO IV
Foi até a livraria novamente. Uma. Duas. Seis vezes.
Só havia homens andróginos e mulheres ansiosas no local em todas as seis vezes. Os livros pareciam murchos.
Chovia no Parque do Palácio. E ventava, e as folhas molhadas impregnavam o calçamento de um cheiro enjoativo.
E então ele se lembrou de Sidney Kerakgsztejn, na redação.
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO III
Ele leu o romance. A história de um homem imortal contada a uma atriz ciente de seu brilho efêmero e desejosa de viver para sempre. Vários séculos e eventos, reais ou fictícios, contados pelo olhar de um homem primeiro poderoso e egocêntrico, depois cansado e cruel e por fim apático e inerte. Uma parábola sobre o tempo. Uma fábula de dor ao longo de setecentos anos. Mas, de todas as maravilhas scheherazádicas do livro, ficou o olhar do conde Fosca, sentado no pátio de um hotelzinho, chovesse ou fizesse sol. Seria vítreo? Irracional? Túrgido? Com que se pareceria o olhar de um homem de setecentos anos? Jon não sabia dizer.
Sentado agora na sala do seu kitchenette, ele pensou em Siddharta Gautama, o Buda, o Iluminado. Era preciso dar adeus ao desejo para vaporizar o sofrimento. Daniela era o Desejo. Mas não fora o intenso desejo, a busca mais renhida, que fizera de Gautama Buda? (O Livre-Arbítrio). Ou não? Ou teria sido o Caminho do Meio o fim do desejo -- e também o começo da iluminação? Aquela árvore frondosa no meio da trilha macerada pelo sol, oh, aquela árvore tinha a mão do Destino. Gautama decidiu se sentar, mas a árvore não estava ali por acaso.
E Daniela era o Desejo. Ele largou o livro e pegou na mesinha de centro o comprovante de cartão de crédito que surripiara da loja quando a vendedora deu uma rápida saída.
"Daniela Wien
0001-4334-6577-1002
VAL. 06-19**"
Não a conseguia tirar da cabeça. Pegou a lista telefônica. Não havia nenhum Wien entre os assinantes. Ligou para a administradora do cartão. Informação privativa, é claro. Não lhe disseram nada.
Acendeu um Hollywood e deitou-se no sofá. O apartamento (?) era frugal, quase nu: o sofá vermelho de couro sintético, rasgado, a mesinha de centro cuja madeira perdera todo o verniz e cujo tampo de vidro rachara durante uma bebedeira com uma prostituta (Márcia. Pelo menos era o nome que ela lhe dissera. Ele suspeitava que era Fátima ou Cleíza). Uma mesa de jantar de bambu. Duas cadeiras de bambu com o encosto gasto e precisando de uma boa lavada. Um fogão, uma geladeira, uma prateleira improvisada com tijolos pintados, cheia de livros mal arrumados, e o som. Discos e CDs espalhados pelos cantos. Wilde. Kiss. Poe. Black Sabbath. Nietzsche. Frank Zappa. Uma salada psíquica.
Ele dormiu. Sonhou com o conde Fosca.
CAPÍTULO III
Ele leu o romance. A história de um homem imortal contada a uma atriz ciente de seu brilho efêmero e desejosa de viver para sempre. Vários séculos e eventos, reais ou fictícios, contados pelo olhar de um homem primeiro poderoso e egocêntrico, depois cansado e cruel e por fim apático e inerte. Uma parábola sobre o tempo. Uma fábula de dor ao longo de setecentos anos. Mas, de todas as maravilhas scheherazádicas do livro, ficou o olhar do conde Fosca, sentado no pátio de um hotelzinho, chovesse ou fizesse sol. Seria vítreo? Irracional? Túrgido? Com que se pareceria o olhar de um homem de setecentos anos? Jon não sabia dizer.
Sentado agora na sala do seu kitchenette, ele pensou em Siddharta Gautama, o Buda, o Iluminado. Era preciso dar adeus ao desejo para vaporizar o sofrimento. Daniela era o Desejo. Mas não fora o intenso desejo, a busca mais renhida, que fizera de Gautama Buda? (O Livre-Arbítrio). Ou não? Ou teria sido o Caminho do Meio o fim do desejo -- e também o começo da iluminação? Aquela árvore frondosa no meio da trilha macerada pelo sol, oh, aquela árvore tinha a mão do Destino. Gautama decidiu se sentar, mas a árvore não estava ali por acaso.
E Daniela era o Desejo. Ele largou o livro e pegou na mesinha de centro o comprovante de cartão de crédito que surripiara da loja quando a vendedora deu uma rápida saída.
"Daniela Wien
0001-4334-6577-1002
VAL. 06-19**"
Não a conseguia tirar da cabeça. Pegou a lista telefônica. Não havia nenhum Wien entre os assinantes. Ligou para a administradora do cartão. Informação privativa, é claro. Não lhe disseram nada.
Acendeu um Hollywood e deitou-se no sofá. O apartamento (?) era frugal, quase nu: o sofá vermelho de couro sintético, rasgado, a mesinha de centro cuja madeira perdera todo o verniz e cujo tampo de vidro rachara durante uma bebedeira com uma prostituta (Márcia. Pelo menos era o nome que ela lhe dissera. Ele suspeitava que era Fátima ou Cleíza). Uma mesa de jantar de bambu. Duas cadeiras de bambu com o encosto gasto e precisando de uma boa lavada. Um fogão, uma geladeira, uma prateleira improvisada com tijolos pintados, cheia de livros mal arrumados, e o som. Discos e CDs espalhados pelos cantos. Wilde. Kiss. Poe. Black Sabbath. Nietzsche. Frank Zappa. Uma salada psíquica.
Ele dormiu. Sonhou com o conde Fosca.
11.5.02
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO I
-- Você tem o olhar do conde Fosca -- disse ela.
Daniela não era nem o Destino, nem o Livre-Arbítrio. Isso era certo. Daniela era o Desejo. Súbito, ele lembrou-se de sua avó, que gostava de falar das mulheres de tez leitosa do começo do século. A pele de Daniela era exatamente da cor do leite; bem, quase; digamos da cor do leite com um sub-reptício jorro de café fervente dentro. Oh, sim, fervente, porque nada poderia haver naquele corpo que lembrasse, nem da maneira mais remota, neve. Os cabelos eram negro-avermelhados, os olhos, dois poços de ébano com um brilho hipnótico. Ela era o Desejo, mas, curiosamente, ele não poderia descrever suas curvas naquele instante, pois que a explosão-mater estava dentro daquelas órbitas. Um big-bang ocultava-se ali, por trás das sobrancelhas capazes dos mais intrincados teleportes -- e de repente ele se viu sugado por aqueles cílios e jogado num poço escuro e úmido, cujo calor era insuportável: o fundo nunca chegava...
-- Você está suando. Está passando mal?
-- Hein?
-- Eu me enganei. Você nada tem do conde. É apenas mais um homem assustado. -- Ela lhe entregou o livro e passou por ele.
-- Espere. Desculpe. Foi... não sei, foi uma vertigem. Quem é o conde Fosca?
Ela apontou o livro.
-- Leia.
Ele olhou a capa. "Todos os Homens São Mortais". Simone de Beauvoir.
[veja o prólogo no post abaixo]
CAPÍTULO I
-- Você tem o olhar do conde Fosca -- disse ela.
Daniela não era nem o Destino, nem o Livre-Arbítrio. Isso era certo. Daniela era o Desejo. Súbito, ele lembrou-se de sua avó, que gostava de falar das mulheres de tez leitosa do começo do século. A pele de Daniela era exatamente da cor do leite; bem, quase; digamos da cor do leite com um sub-reptício jorro de café fervente dentro. Oh, sim, fervente, porque nada poderia haver naquele corpo que lembrasse, nem da maneira mais remota, neve. Os cabelos eram negro-avermelhados, os olhos, dois poços de ébano com um brilho hipnótico. Ela era o Desejo, mas, curiosamente, ele não poderia descrever suas curvas naquele instante, pois que a explosão-mater estava dentro daquelas órbitas. Um big-bang ocultava-se ali, por trás das sobrancelhas capazes dos mais intrincados teleportes -- e de repente ele se viu sugado por aqueles cílios e jogado num poço escuro e úmido, cujo calor era insuportável: o fundo nunca chegava...
-- Você está suando. Está passando mal?
-- Hein?
-- Eu me enganei. Você nada tem do conde. É apenas mais um homem assustado. -- Ela lhe entregou o livro e passou por ele.
-- Espere. Desculpe. Foi... não sei, foi uma vertigem. Quem é o conde Fosca?
Ela apontou o livro.
-- Leia.
Ele olhou a capa. "Todos os Homens São Mortais". Simone de Beauvoir.
[veja o prólogo no post abaixo]
10.5.02
É hoje!!! Prezados leitores, apresento-lhes minha primeira blognovela. Vou publicá-la todinha aqui. Um capítulo por dia (são 31), exceto fins de semana (ou por algum motivo de força maior. Mas, por acaso, este fim de semana devo postar mais alguns, para reforçar a estréia). Espero que vocês gostem, é uma grande viagem. Conto com seus comments para animar a festa. Bom, então aí vai o começo:
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
uma blognovela de André Machado
PRÓLOGO
A vida é uma partida de xadrez jogada com muita ironia entre o Destino e o Livre-Arbítrio. Foi o que ficou pensando Jon quando se deitou naquela noite. Tentava descobrir se o encontro com Daniela fora casual ou fomentado por uma decisão sua. Ao caminhar pela Praia do Flamengo naquele dia fresco e ensolarado, ele passou pelo portão do Parque do Palácio do Catete e contemplou sua festa verde, o canal cujas águas ondulavam suavemente ao sabor da brisa, as minipontes rústicas. Decidiu entrar. Passeou pela velha alameda de palmeiras imperiais, foi até a olvidada fonte de 1854 (o ano de nascimento de Wilde, o ano de casamento de Elizabeth da Áustria, um ano do Tigre), observou a caverna onde assistira a uma montagem de "O Rinoceronte" muito divertida -- o texto já era fantástico, os atores também, mas o público veio abaixo quando, em meio a uma das cenas mais engraçadas, um morcego saiu da caverna e deu um vôo rasante, faceiro, sobre o elenco. Não houve quem não se apavorasse e o bolo, isto é, a cena, quase desandou.
Era uma noite fresca como a que este dia prometia...
Então, retornou e entrou na livraria recém-reformada do Palácio. Como sempre, ele estava sem dinheiro, mas o simples fato de entrar ali e respirar aqueles livros... ah, era tão restaurador quanto uma sauna ou massagem. Sentia a mesma coisa quando entrava na Livraria Leonardo da Vinci, no subsolo do Edifício Marquês do Herval, no centro da cidade -- o célebre "Buraco do Herval", como os chamavam os bibliófilos de plantão. A Leonardo da Vinci não era uma livraria, era um templo. Se você fechasse os olhos ao abrir a porta de vidro da loja principal, podia sentir o tilintar dos chamarizes e móbiles coloridos no teto e imaginar um sacerdote balançando um turíbulo -- cujo incenso traria o perfume dos livros e revistas, inesquecível para ele desde sua infância mais tenra. E havia sempre Mozart, Schubert, Vivaldi permeando o ambiente, seus instrumentos conversando com o Espírito, como diria Beethoven, misturando-se às idéias geniais dos filósofos, às teorias dos historiadores, aos delírios dos poetas... Muitas vezes ele ficava ali tardes inteiras até as pernas reclamarem veementemente de cansaço. Comprazia-se em pensar que a livraria era seu paraíso -- um paraíso sob a terra.
Comparada à Da Vinci, a loja do museu era uma capelinha, mas uma capelinha bem organizada e inspiradora a seu modo. Ali ele comprara seu primeiro livro de Lima Barreto, "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", que começara a ler um pouco irritado, mas que enchera seus olhos d'água várias vezes. Jornalista, entendia bem do que falava Barreto quando ele satirizava o pedante João do Rio, quando tecia um hino de amor a Floc em sua crônica dificuldade de encontrar um lead, quando as manchetes baratas atraíam turbas para a porta do jornal. Meu Deus, e era 1909.
Seus próprios passos o haviam levado até a livraria -- era o Livre-Arbítrio --, mas agora o Destino entrou em cena na forma de um livro mal puxado da estante (era "A Vida Vertiginosa de João do Rio", de R. Magalhães Jr.). Com ele, vieram mais uns três, que voaram para o chão, enquanto os restantes na prateleira inclinavam-se, aborrecidos, as lombadas perdendo toda a imponência.
Jon ficou vermelho, abaixou-se para apanhar os livros, e eis que um par de mãos brancas surgiu diante de seus olhos a oferecer-lhe Simone de Beauvoir.
Era Daniela.
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
uma blognovela de André Machado
PRÓLOGO
A vida é uma partida de xadrez jogada com muita ironia entre o Destino e o Livre-Arbítrio. Foi o que ficou pensando Jon quando se deitou naquela noite. Tentava descobrir se o encontro com Daniela fora casual ou fomentado por uma decisão sua. Ao caminhar pela Praia do Flamengo naquele dia fresco e ensolarado, ele passou pelo portão do Parque do Palácio do Catete e contemplou sua festa verde, o canal cujas águas ondulavam suavemente ao sabor da brisa, as minipontes rústicas. Decidiu entrar. Passeou pela velha alameda de palmeiras imperiais, foi até a olvidada fonte de 1854 (o ano de nascimento de Wilde, o ano de casamento de Elizabeth da Áustria, um ano do Tigre), observou a caverna onde assistira a uma montagem de "O Rinoceronte" muito divertida -- o texto já era fantástico, os atores também, mas o público veio abaixo quando, em meio a uma das cenas mais engraçadas, um morcego saiu da caverna e deu um vôo rasante, faceiro, sobre o elenco. Não houve quem não se apavorasse e o bolo, isto é, a cena, quase desandou.
Era uma noite fresca como a que este dia prometia...
Então, retornou e entrou na livraria recém-reformada do Palácio. Como sempre, ele estava sem dinheiro, mas o simples fato de entrar ali e respirar aqueles livros... ah, era tão restaurador quanto uma sauna ou massagem. Sentia a mesma coisa quando entrava na Livraria Leonardo da Vinci, no subsolo do Edifício Marquês do Herval, no centro da cidade -- o célebre "Buraco do Herval", como os chamavam os bibliófilos de plantão. A Leonardo da Vinci não era uma livraria, era um templo. Se você fechasse os olhos ao abrir a porta de vidro da loja principal, podia sentir o tilintar dos chamarizes e móbiles coloridos no teto e imaginar um sacerdote balançando um turíbulo -- cujo incenso traria o perfume dos livros e revistas, inesquecível para ele desde sua infância mais tenra. E havia sempre Mozart, Schubert, Vivaldi permeando o ambiente, seus instrumentos conversando com o Espírito, como diria Beethoven, misturando-se às idéias geniais dos filósofos, às teorias dos historiadores, aos delírios dos poetas... Muitas vezes ele ficava ali tardes inteiras até as pernas reclamarem veementemente de cansaço. Comprazia-se em pensar que a livraria era seu paraíso -- um paraíso sob a terra.
Comparada à Da Vinci, a loja do museu era uma capelinha, mas uma capelinha bem organizada e inspiradora a seu modo. Ali ele comprara seu primeiro livro de Lima Barreto, "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", que começara a ler um pouco irritado, mas que enchera seus olhos d'água várias vezes. Jornalista, entendia bem do que falava Barreto quando ele satirizava o pedante João do Rio, quando tecia um hino de amor a Floc em sua crônica dificuldade de encontrar um lead, quando as manchetes baratas atraíam turbas para a porta do jornal. Meu Deus, e era 1909.
Seus próprios passos o haviam levado até a livraria -- era o Livre-Arbítrio --, mas agora o Destino entrou em cena na forma de um livro mal puxado da estante (era "A Vida Vertiginosa de João do Rio", de R. Magalhães Jr.). Com ele, vieram mais uns três, que voaram para o chão, enquanto os restantes na prateleira inclinavam-se, aborrecidos, as lombadas perdendo toda a imponência.
Jon ficou vermelho, abaixou-se para apanhar os livros, e eis que um par de mãos brancas surgiu diante de seus olhos a oferecer-lhe Simone de Beauvoir.
Era Daniela.
9.5.02
De Walt Whitman, belo e triste...
O Captain! my Captain! our fearful trip is done,
The ship has weather'd every rack, the prize we sought is won,
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring;
But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
Rise up--for you the flag is flung--for you the bugle trills,
For you bouquets and ribbon'd wreaths--for you the shores
a-crowding,
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;
Here Captain! dear father!
This arm beneath your head!
It is some dream that on the deck,
You've fallen cold and dead.
My Captain does not answer, his lips are pale and still,
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will,
The ship is anchor'd safe and sound, its voyage closed and done,
From fearful trip the victor ship comes in with object won;
Exult O shores, and ring O bells!
But I with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
O Captain! my Captain! our fearful trip is done,
The ship has weather'd every rack, the prize we sought is won,
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring;
But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
Rise up--for you the flag is flung--for you the bugle trills,
For you bouquets and ribbon'd wreaths--for you the shores
a-crowding,
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;
Here Captain! dear father!
This arm beneath your head!
It is some dream that on the deck,
You've fallen cold and dead.
My Captain does not answer, his lips are pale and still,
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will,
The ship is anchor'd safe and sound, its voyage closed and done,
From fearful trip the victor ship comes in with object won;
Exult O shores, and ring O bells!
But I with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
6.5.02
Neve
Neve
É o que atiras sobre os cabelos em desalinho
De minha alma:
Neve em flocos revestidos de chumbo
Que fingimos serem palavras.
Mas que escolha tenho?
Antes sentir a feroz cãibra do desprezo
Antes sentir tuas unhas rubras
Gentilmente esfolando minha esperança
Do que beber para sempre
Do cálice da solidão: despertar todas as manhãs
Ao lado do nada -- fazer amor com ele
E ficar grávido de lugares-comuns
E beijar a fé, e acreditar.
Torture-me, pois, por favor.
Eu vou sorrir quando furares minhas mãos com diamantes
E gozar quando me enfiares ácido umbigo abaixo.
Neve
É o que atiras sobre os cabelos em desalinho
De minha alma:
Neve em flocos revestidos de chumbo
Que fingimos serem palavras.
Mas que escolha tenho?
Antes sentir a feroz cãibra do desprezo
Antes sentir tuas unhas rubras
Gentilmente esfolando minha esperança
Do que beber para sempre
Do cálice da solidão: despertar todas as manhãs
Ao lado do nada -- fazer amor com ele
E ficar grávido de lugares-comuns
E beijar a fé, e acreditar.
Torture-me, pois, por favor.
Eu vou sorrir quando furares minhas mãos com diamantes
E gozar quando me enfiares ácido umbigo abaixo.
3.5.02
Este é um post direto do III Fórum Internacional de Software Livre, em Porto Alegre. Em outras palavras, o paraíso dos gnus e dos pingüins. As conferências e debates estão quentes e fala-se sobre o uso do free software em tudo: de gerenciamento de conteúdo a telecom. Depois conto mais quando voltar.