O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO
CAPÍTULO III
Ele leu o romance. A história de um homem imortal contada a uma atriz ciente de seu brilho efêmero e desejosa de viver para sempre. Vários séculos e eventos, reais ou fictícios, contados pelo olhar de um homem primeiro poderoso e egocêntrico, depois cansado e cruel e por fim apático e inerte. Uma parábola sobre o tempo. Uma fábula de dor ao longo de setecentos anos. Mas, de todas as maravilhas scheherazádicas do livro, ficou o olhar do conde Fosca, sentado no pátio de um hotelzinho, chovesse ou fizesse sol. Seria vítreo? Irracional? Túrgido? Com que se pareceria o olhar de um homem de setecentos anos? Jon não sabia dizer.
Sentado agora na sala do seu kitchenette, ele pensou em Siddharta Gautama, o Buda, o Iluminado. Era preciso dar adeus ao desejo para vaporizar o sofrimento. Daniela era o Desejo. Mas não fora o intenso desejo, a busca mais renhida, que fizera de Gautama Buda? (O Livre-Arbítrio). Ou não? Ou teria sido o Caminho do Meio o fim do desejo -- e também o começo da iluminação? Aquela árvore frondosa no meio da trilha macerada pelo sol, oh, aquela árvore tinha a mão do Destino. Gautama decidiu se sentar, mas a árvore não estava ali por acaso.
E Daniela era o Desejo. Ele largou o livro e pegou na mesinha de centro o comprovante de cartão de crédito que surripiara da loja quando a vendedora deu uma rápida saída.
"Daniela Wien
0001-4334-6577-1002
VAL. 06-19**"
Não a conseguia tirar da cabeça. Pegou a lista telefônica. Não havia nenhum Wien entre os assinantes. Ligou para a administradora do cartão. Informação privativa, é claro. Não lhe disseram nada.
Acendeu um Hollywood e deitou-se no sofá. O apartamento (?) era frugal, quase nu: o sofá vermelho de couro sintético, rasgado, a mesinha de centro cuja madeira perdera todo o verniz e cujo tampo de vidro rachara durante uma bebedeira com uma prostituta (Márcia. Pelo menos era o nome que ela lhe dissera. Ele suspeitava que era Fátima ou Cleíza). Uma mesa de jantar de bambu. Duas cadeiras de bambu com o encosto gasto e precisando de uma boa lavada. Um fogão, uma geladeira, uma prateleira improvisada com tijolos pintados, cheia de livros mal arrumados, e o som. Discos e CDs espalhados pelos cantos. Wilde. Kiss. Poe. Black Sabbath. Nietzsche. Frank Zappa. Uma salada psíquica.
Ele dormiu. Sonhou com o conde Fosca.
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