8.7.02

Fragmentos de um original roído pelas traças -- I

HENRIQUE
Mas então você não acha que ele escreve bem?

OTÁVIO
Ele escreve bem, mas não é um bom escritor.

MARCEL
Não vejo diferença...

OTÁVIO
Para escrever bem, você precisa saber todas as regras da gramática e todas as preciosidades do vocabulário. Para ser um bom escritor, você precisa de muito mais -- e sequer necessita da gramática. Um bom escritor mexe com idéias e não com palavras.

HENRIQUE
Idéias originais?

OTÁVIO
Às vezes. Sabem, no fundo, a originalidade não existe de fato. A alma humana é insondável demais para que alguém reivindique a invenção de qualquer coisa. Quem pode afirmar que a criação não esteve outrora nos subterrâneos das almas de outros homens?

MARCEL
Você quer dizer o inconsciente... Mas talvez a originalidade possa ser justamente a capacidade de extrair certa idéia do inconsciente e trazê-la à luz.

OTÁVIO, sorrindo.
Isso não é ser original. Isso é ser capaz de se comunicar e de teorizar, ou até de experimentar -- embora eu não leve em consideração esse tipo de experiência, já que faz sentido. A originalidade deixa de existir no momento em que passa a pertencer ao mundo das palavras. É por isso que digo que o bom escritor mexe com idéias. A "originalidade" desse bom escritor está justamente no que não foi escrito, entendeu? Ela pertence aos esgotos e às vísceras, que de certo modo são os esgotos do homem. Todos gostam de falar do cérebro humano; alguns defendem o coração; mas já descobri que as vísceras do homem guardam todo o seu potencial criativo. E só os escritores que remexem em suas vísceras conseguem alcançar a imortalidade. Há escritores cerebrais e escritores sentimentais -- e, hoje em dia, até escritores "capitais" --; mas estes nada valem se comparados aos mestres viscerais. É por isso que muitos artistas "originais" deixam obras que nos parecem "horríveis". Nem todas as tripas são revolvidas sem choques e angústias, e é por isso que o original traz sempre consigo alguma coisa de horripilante.

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