10.5.02

É hoje!!! Prezados leitores, apresento-lhes minha primeira blognovela. Vou publicá-la todinha aqui. Um capítulo por dia (são 31), exceto fins de semana (ou por algum motivo de força maior. Mas, por acaso, este fim de semana devo postar mais alguns, para reforçar a estréia). Espero que vocês gostem, é uma grande viagem. Conto com seus comments para animar a festa. Bom, então aí vai o começo:

O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

uma blognovela de André Machado

PRÓLOGO

A vida é uma partida de xadrez jogada com muita ironia entre o Destino e o Livre-Arbítrio. Foi o que ficou pensando Jon quando se deitou naquela noite. Tentava descobrir se o encontro com Daniela fora casual ou fomentado por uma decisão sua. Ao caminhar pela Praia do Flamengo naquele dia fresco e ensolarado, ele passou pelo portão do Parque do Palácio do Catete e contemplou sua festa verde, o canal cujas águas ondulavam suavemente ao sabor da brisa, as minipontes rústicas. Decidiu entrar. Passeou pela velha alameda de palmeiras imperiais, foi até a olvidada fonte de 1854 (o ano de nascimento de Wilde, o ano de casamento de Elizabeth da Áustria, um ano do Tigre), observou a caverna onde assistira a uma montagem de "O Rinoceronte" muito divertida -- o texto já era fantástico, os atores também, mas o público veio abaixo quando, em meio a uma das cenas mais engraçadas, um morcego saiu da caverna e deu um vôo rasante, faceiro, sobre o elenco. Não houve quem não se apavorasse e o bolo, isto é, a cena, quase desandou.
Era uma noite fresca como a que este dia prometia...
Então, retornou e entrou na livraria recém-reformada do Palácio. Como sempre, ele estava sem dinheiro, mas o simples fato de entrar ali e respirar aqueles livros... ah, era tão restaurador quanto uma sauna ou massagem. Sentia a mesma coisa quando entrava na Livraria Leonardo da Vinci, no subsolo do Edifício Marquês do Herval, no centro da cidade -- o célebre "Buraco do Herval", como os chamavam os bibliófilos de plantão. A Leonardo da Vinci não era uma livraria, era um templo. Se você fechasse os olhos ao abrir a porta de vidro da loja principal, podia sentir o tilintar dos chamarizes e móbiles coloridos no teto e imaginar um sacerdote balançando um turíbulo -- cujo incenso traria o perfume dos livros e revistas, inesquecível para ele desde sua infância mais tenra. E havia sempre Mozart, Schubert, Vivaldi permeando o ambiente, seus instrumentos conversando com o Espírito, como diria Beethoven, misturando-se às idéias geniais dos filósofos, às teorias dos historiadores, aos delírios dos poetas... Muitas vezes ele ficava ali tardes inteiras até as pernas reclamarem veementemente de cansaço. Comprazia-se em pensar que a livraria era seu paraíso -- um paraíso sob a terra.
Comparada à Da Vinci, a loja do museu era uma capelinha, mas uma capelinha bem organizada e inspiradora a seu modo. Ali ele comprara seu primeiro livro de Lima Barreto, "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", que começara a ler um pouco irritado, mas que enchera seus olhos d'água várias vezes. Jornalista, entendia bem do que falava Barreto quando ele satirizava o pedante João do Rio, quando tecia um hino de amor a Floc em sua crônica dificuldade de encontrar um lead, quando as manchetes baratas atraíam turbas para a porta do jornal. Meu Deus, e era 1909.
Seus próprios passos o haviam levado até a livraria -- era o Livre-Arbítrio ­--, mas agora o Destino entrou em cena na forma de um livro mal puxado da estante (era "A Vida Vertiginosa de João do Rio", de R. Magalhães Jr.). Com ele, vieram mais uns três, que voaram para o chão, enquanto os restantes na prateleira inclinavam-se, aborrecidos, as lombadas perdendo toda a imponência.
Jon ficou vermelho, abaixou-se para apanhar os livros, e eis que um par de mãos brancas surgiu diante de seus olhos a oferecer-lhe Simone de Beauvoir.
Era Daniela.

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