28.6.02

Gosta de castelos mal-assombrados? Então entre.
Metamorfose

Oh, esse maldito pêndulo que jamais cessa
A dor do canto e da alegria da natureza
E o brilho da luz impiedosa sobre meus ombros raquíticos
Estoure, íris, arrebente!
Os tímpanos são gongos de platina
Que vibram a cada estalo do moedor de cérebros podres
O verão aterrissa em minha saliva
E incandesce garganta abaixo
Até tomar todo o meu corpo
E com ele formar um só crepúsculo
Uma só infâmia.

27.6.02

Hoje, alguns comentários do cadafalso.
Estava eu assistindo à série sobre as drogas que a GNT exibe -- na qual, entre outras coisas, a gente fica sabendo porque a Colômbia chegou aonde está -- e fiquei meditando sobre o depoimento de um agente da Drug Enforcement Agency (DEA), dos EUA. Ele disse mais ou menos o seguinte: "o negócio das drogas não vai desaparecer tão cedo. Depois de vários estudos, chegamos à conclusão de que é uma indústria que pode perder 90% de seu produto e ainda assim auferir lucros. É como se a General Motors fabricasse 1 milhão de carros, perdesse 900 mil e ainda assim lucrasse com a venda dos 100 mil restantes. Trata-se de um negócio de proporções inimagináveis".
É de dar calafrios.

26.6.02

I don't go looking for trouble,
It's always coming my way,
But, I've been looking for you,
And like the summer sun, you welcome my day.

So come on, come on,
And give your man some rock 'n' roll,
And get yourself some sweet rock 'n' roll.

I'm just a soldier of fortune,
Must be the gypsy in me.
I ain't alone when I say
I never needed love so badly before.

Hear me singing "Come on, come on"!
Give your man some rock 'n' roll,
And get yourself some sweet rock 'n' roll.


("Come on", Whitesnake, 1978)

25.6.02

Último desejo

Um beijo é só o que peço:
o toque de teus lábios molhados e trêmulos
em minha boca esperançosa e ressequida.
Dá-mo e morrerei em paz
contemplando tuas órbitas de doce-de-leite.

Ah! obrigado! já me posso ir.
Agora afasta-te um pouco
pois que é a vez de a Dama de Negro me beijar.
Não, não chores -- tu me ungiste com tua doçura,
e este é o único rito que necessito.

Disseste que não mais podes amar
Mas me amaste assim mesmo, sem perceberes.
Eis meu legado, o possível nesta terra sem ar para as almas:
ressuscitar-te para a paixão.

24.6.02

There's a party going on right here

Quando te foste,
Eu me regozijei
E dei uma festa
E queimei tuas cartas perfumadas
E chupei hibiscos sanguinolentos
E bebi sucos de dores delicadas
E tive um enfarte do fígado
Porque ri e babei.
Um brinde à solidão!
Um brinde ao confronto com a alma em telequetes primais!
Um brinde à morte de um amor
Condição si ne qua non do nascimento do próximo.

21.6.02

Invencível

a carne verde se desmancha no chão envelhecido
as frutas obedecem à gravidade sem que ninguém venha acarinhá-las
e morrem solitárias entre as folhas agonizantes
os legumes no lixo ganham tons camaleônicos e fétidos.

é aí que a vida mostra sua verdadeira face
refluindo em vermes que surgem do nada
e escarnecem da morte com seu apetite coleante.

No fundo, é impossível vencer a vida
e a morte não tem aquela foice, nem as presas afiadas que imaginamos.
Ela é apenas um mendigo de olhar abobalhado
que pede de quando em vez trocados ao cosmo.

Este, por sua vez, aquiesce,
só para nos iludir com a sensação de tempo
e nos apequenar a alma.

Mas não consegue.

20.6.02

Bom, este é o fim de minha primeira blognovela. Espero os comentários de vocês. E logo estarei retornando aos poemas habituais deste Cadafalso. Mas estou pensando em escrever outras blognovelas, ou adaptar novelas que escrevi na década passada para a web. Vamos ver no que dá. O certo é que não quero parar, não é do meu feitio ;-)
Aos que acompanharam "O Destino, o Livre-Arbítrio e o Desejo", meus mais sinceros agradecimentos (e desculpas pelas pausas involuntárias no desfiar da história, devido aos compromissos de trabalho). Jon e Daniela brindam a vocês, com toda a certeza. E eu também, é claro.
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

EPÍLOGO


Sim, Daniela era o Desejo. Não o Livre-Arbítrio; não o Destino; mas o Desejo. E, mesmo senhora dos mundos e dos grupos de mundos e das confederações de tais grupos, precisava casar-se, como explicou a seu noivo, com um mortal de tempos em tempos para conhecer sua Verdadeira Essência. E desta vez o Eleito fora Jon, e ela se deleitara de modo especial ao caçá-lo. Pois era preciso que ele viajasse ao limbo de livre vontade, habilmente persuadido, jamais à força, para pedir por ela a seus irmãos milenares. Que, não é preciso dizer, se divertiam muito com a coisa toda.
Jon nunca mais voltou a uma redação, nem foi lembrado por seus pares. Viveu o resto de seus anos (e foram muitos) explorando seu novo hábitat e travando conhecimento com todas as criaturas míticas e artistas que tanto amara em sua adolescência.
Quando ele morreu, cercado de glórias, chegou ao nosso mundo, através de um guru que acidentalmente sintonizara o canal certo, o boato de que Daniela (seu nome verdadeiro é outro, impronunciável) não quis se casar por muitos e muitos milhares de anos. Bom, pelo menos o Jon foi feliz para sempre. E nossa história acaba aqui.
Leitor -- "Mas espera aí! E aquela história do Destino? E a nova Peste Negra?"
Ah, é. De fato, aquele era o destino de ambos. O próprio Jon perguntou a Daniela o que aconteceria.
A resposta dela foi: "Não se preocupe, meu amor. Com uma ajudinha do Livre-Arbítrio, o Desejo sempre vence o Destino."
Xeque-mate.

T H E E N D
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XXXI


Daniela veio caminhando devagar da sacada, como se tivesse se materializado ali naquele instante. Estava vestida como ele, à moda renascentista, e isso realçava sua pele imaculada, emoldurada pelos cabelos negro-avermelhados expostos à brisa. Era uma visão ímpar. Jon quase chorou só por ser abençado com tal visão.
Ela sentou-se em seu colo. Seu cheiro inebriou-o de tesão.
-- Está na hora? -- perguntou ele.
-- De quê, meu querido? -- volveu ela.
-- De nos encontrarmos com o Desejo...
Ela sorriu, e nenhuma mulher terá tal sorriso em toda a história da humanidade.
-- Com o Desejo? -- repetiu ela, divertida.
-- É. Você não percebe? -- Jon estava compenetrado. -- Encontramos primeiro o Livre-Arbítrio. Depois, o Destino. Eu não posso ter certeza, mas desde que conheci você, essas coisas têm atravessado minha mente, para lá e para cá, o tempo todo. Eu oscilava entre o Livre-Arbítrio, o Destino... e o Desejo. Como um joguete nas mãos de um escritor. Então, quando você me contou sua história e viemos para esta dimensão (aliás, ainda estamos nela?), encontramos os dois primeiros, ou as entidades que os representam, sei lá. E, pelas minhas contas, só falta pedir por você ao Desejo.
Fez-se uma pausa.
-- Você não precisa, meu amor. Já acabou.
-- Mas não eram três os mestres que você mencionou?
Ela aquiesceu.
-- Eles continuam três. Você tem razão.
-- Então, onde está o terceiro?
Ela não respondeu. Convocou os músicos novamente, tomou-o pela mão e dançaram, dançaram, dançaram. A noite prosseguiu e o baile particular adentrou por ela. Não havia cansaço.
Por fim, quando a última estrela se despediu e deu licença ao primeiro raio de sol, Daniela bateu palmas e um criado lhe trouxe uma caixinha de veludo verde-musgo.
Jon estava na sacada, respirando o ar da manhã recém-chegada, quando se virou e viu sua amada ajoelhada diante dele, com uma caixinha na mão.
-- Jon... você quer se casar comigo? -- sussurrou Daniela.
Ela abriu a caixa e ele viu um anel com um brilhante solitário. Dentro do brilhante, cuja luminescência era diferente da de qualquer outra gema, percebeu mundos, sistemas e galáxias em contínua revolução. Nebulosas e quasares por vezes turvavam a visão daquele reino de maravilhas, mas logo ele voltava a assombrar os olhos daquele pobre mortal. Seu queixo quase caiu. Mas ele se recompôs a tempo de se ajoelhar também e dizer, com os olhos cheios d'água, a palavra mágica:
-- Sim.
E aquele "sim" ecoou por todas as línguas e mundos e se refletiu em decisões de estrátegos interplanetários; e mergulhou a iníqua e mesquinha Terra numa era melhor, ainda que desavisadamente. Jon sentiu alguma coisa mudar dentro de si e a paisagem toda à sua volta tremular de emoção. Mas por quê?
-- Porque eu sou o Desejo, Jon -- disse Daniela.
Então ele compreendeu.
E imediatamente a ajudou a levantar-se.
E prostrou-se a seus pés, soluçando de felicidade e incredulidade.

19.6.02

Amanhã, neste blog:

O último capítulo e o Epílogo de "O Destino, o Livre-Arbítrio e o Desejo".
Não percam!
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XXX


Jon sentava-se agora a uma das extremidades de uma mesa ornada de castiçais. Todas as velas estavam acesas, bem como as dos candelabros que se sucediam no salão espelhado onde se encontrava. Vestia uma roupa renascentista, apropriada para o clima de outono perfumado que entrava pela janela escancarada. Levantou-se e foi até lá. Descobriu uma sacada que dava para o bosque mais perfeito que já vira. Era como uma pintura impressionista, e dele vinham os murmúrios suaves de um riacho que se não podia descortinar. Na verdade, não era possível vislumbrar o fim do próprio bosque, que se perdia na distância.
A calma do lugar era revigorante. Inspiradora. "Só falta música", pensou.
E acordes de flauta e alaúde ecoaram de uma das portas do salão. Logo entrou uma trupe de músicos que instou-o a sentar-se e fruir suas canções. Tocaram durante um bom tempo e Jon não sabia se tinham se passado horas ou dias. Ao cabo de uma ária que o comovera de modo especial, pensou: "Puxa. Eles não podem fazer melhor que isso. Que delícia. Só me falta boa comida e vinho."
Foi a deixa para os músicos saírem após uma vênia. Em seu lugar vieram copeiras, que lhe serviram o melhor bordeaux que já experimentara. Outros criados trouxeram faisão, foie-gras e frutas.
Novamente perdeu a noção do tempo enquanto restaurava suas forças. Tudo aquilo lhe parecia irreal. Mas era certamente um alívio depois do encontro com o Destino.
Por fim, pareceu despertar do torpor que o acometera desde que se deparara com o salão.
Onde estava Daniela?
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XXIX


Nos olhos de Daniela estava a chave. Nada em suas órbitas mudara. Nada. Ali estava a essência de tudo o que Jon amava nela.
Então, fazendo um esforço hercúleo, deu um passo em sua direção. Depois outro. E mais outro. Levou uma era para chegar aonde ela jazia. Aí hesitou. Ela não mais parecia uma mulher, mas um sátiro fétido, com dentes podres, chifres amarelados...
Mas os olhos eram os olhos de Daniela. A única.
Jon ajoelhou-se a custo e, inclinando-se, beijou suavemente a boca do monstro. Quis gritar de desespero, mas as únicas palavras que saíram de sua boca ao se voltar para o Senhor da Sina foram:
-- Eu graciosamente aceito meu fado. Ei-lo -- e ajudou o sátiro a se erguer.
-- Assim seja -- retrucou o Destino. Ato contínuo, apagou-se o fogo diante da mesa e tudo ficou às escuras. Logo Jon se deu conta que a caverna sumira.

17.6.02

O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XXVIII


Jon e Daniela ficaram em silêncio. Não podiam acreditar no que estavam ouvindo.
-- É o seu destino, seu fado -- disse a besta. -- Está escrito. Não há como fugir.
Jon tremia feito vara verde, mas ainda conseguia pensar. "Ora, se não tenho como fugir, que diabos! Por que desistir dela?" Mas tinha medo. Apoderava-se dele a sensação de fazer parte de uma ordem cósmica e colossal. Via-se, já, como o personagem de alguma tragédia neo-pós-grega, torturado pelas coisas que faz justamente porque TEM de fazê-las.
Olhou de novo para Daniela e de repente ela assomava associada às brumas cruéis do Destino. Pareceu-lhe feia e deformada. Pela primeira vez quis voltar no tempo e jamais tê-la conhecido.
Ela percebeu que ele titubeava. Agarrou seu braço, mas o Destino estalou os dedos e ela foi jogada para a parede oposta da câmara por uma corrente enregelante de ar.
-- Ele tem de fazer isso sozinho -- disse a voz na mente de Daniela. E ela sabia que assim era. Ficou ali, imóvel, ofegante, contemplando Jon.
Este precisou de toda a sua força de vontade para voltar seus olhos para ela. Da antiga beleza, restara apenas uma coisa meio amorfa que o medo criara. Mas seria medo? Ou era assim mesmo que Daniela ficava, sob a ótica da Sina? Ele não mais sabia.
Então seus olhos encontraram os dela.

14.6.02

O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XXVII


O Destino tirou de algum lugar que não puderam precisar um livro enorme. Parecia a versão gigantesca de uma história infantil: quando se viravam as páginas, apareciam cenas em três dimensões que contavam sua própria história.
-- Aproximem-se -- disse, enquanto procurava a página certa. O cheiro de couro de pergaminho impregnou o ambiente. -- Deixem-me ver... Jon... Jon Lord... Oliveira.
Surgiu uma cena difusa na página virada pela criatura. Não dava para ver o que acontecia. Mas a um gesto tudo apareceu projetado numa das paredes da câmara.
E Jon sentiu engulhos de repente. A cena mostrava populações de cidades de todo o Brasil morrendo aos milhares de uma doença infecciosa. As pessoas tombavam nas ruas de um momento para o outro; era como na época da Peste Negra, no século XIV. Entretanto, aquilo era o futuro, constatou Jon.
-- Sim, eis o futuro. É exatamente o que você pensou: a volta da Peste Negra. Com grandes chances de virar pandemia.
Jon olhou uma das manchetes de jornal que apareciam na "película".
-- Mas... isso é daqui a sessenta anos! Com certeza já estaremos mortos até lá -- balbuciou, com muita dificuldade, pois seus dentes se entrechocavam.
O Destino olhou-o no fundo dos olhos, e seu olhar era implacável.
-- É claro. O responsável por isso será o filho de vocês. Ian Paice Oliveira. Um cientista brilhante, mas descuidado. Suas experiências com mutações e clonagem múltipla em microorganismos trarão a Peste Negra de volta em todo o seu esplendor.

13.6.02

O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XXVI


Um fogo queimava no fundo da caverna. Esta era estranhamente uniforme: não havia reentrâncias, saliências ou cavernas menores que os desviassem do caminho único, o qual levava a uma câmara enorme que era, efetivamente, o fim daquela formação rochosa.
Sentada a uma tosca mesa de madeira sem qualquer adorno, estava a criatura mais horrenda que Jon jamais vira. Pensou em todos os grandes monstros míticos -- a Hidra de Lerna, a Quimera, a Mantícora, o Basilisco, Cérbero... -- e constatou que o que contemplava aterrorizaria até mesmo alguém que só contasse com a visão periférica. Não demorou muito, começou a tremer convulsivamente. Nem mesmo um beijo de Daniela conseguiu acalmá-lo. Ficaram os dois parados diante daquela besta. Mas o que era aquilo? Um ser humanóide? Um animal? Um elemental?
-- Sou o Destino, Jon -- falou uma voz roufenha na mente do jornalista aterrorizado. -- E aviso desde já: você não pode ter Daniela. O Livre-Arbítrio de nada adianta; ele está morto há muito tempo e por isso está vagando nestas paragens.
E riu. A risada do Destino era pior que um milhão de facas penetrando seu corpo ao mesmo tempo.

12.6.02

O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XXV


O dilema era apenas escolher a vida com ou sem Daniela. Na verdade, não era difícil. Jon olhou para ela, um portento de luz em meio ao jardim esmaecido, e sorriu. Tocou-lhe os cabelos.
-- Eu escolho você -- disse docemente. -- Embora você tenha me escolhido...
-- Assim seja -- declarou o Livre-Arbítrio, jogando um pozinho no ar que se iluminou com as sete cores do arco-íris e logo formou uma trilha alegre entre as cercas-vivas. -- É o caminho para sair do labirinto. Boa sorte.
Os dois seguiram pela trilha, que desembocava num portão. Em frente a este, estava a boca de uma caverna. Sentiram-se imediatamente atraídos para lá por uma compulsão irresistivel, como se estivesse escrito que deveriam entrar.

11.6.02

O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XXIV


Depois de uma pausa, Jon começou:
-- Daniela me diz que tenho de pedir por ela, mas não deu detalhes...
-- Ah, não basta simplesmente pedir, jovem Jon -- respondeu o Livre-Arbítrio. -- Terá de resolver um dilema. Ou vários...
E, estendendo a mão sobre uma grande travessa reluzente, mostrou a Jon vários futuros possíveis. Num deles, estava casado com Daniela, com cinco filhos e morando num subúrbio feio, numa casa eternamente em obras, úmida, lúgubre. Noutro, os dois se entregavam a traições e agressões mútuas, o que resultava num divórcio para lá de litigioso. Noutro ainda, Daniela matava Jon por ciúmes de uma amiga escritora. Em todas as imagens dos dois juntos, havia uma espécie de urucubaca onipresente -- embora em alguns casos eles conseguissem vencer os problemas e viver juntos em relativa harmonia até ficarem bem velhinhos.
O futuro de Jon sem Daniela, que foi mostrado a seguir sobre uma tábua de carne polida, era melhor, mas nem sempre. Em alguns prognósticos ele se destacava no jornalismo, abiscoitando alguns prêmios Esso e chefiando um grande jornal; noutros se tornava um celebrado escritor. Mas havia imagens que o mostravam se entregando ao álcool e às drogas. A maioria das relações em que se envolvia não durava, embora houvesse ao menos um exemplo de casamento sossegado com uma jovem morena que ele acreditava não conhecer ainda.
Por fim, aquela estranha figura no jardim encerrou a sessão com um gesto.
-- Seu futuro pode estar entre estes. Ou não. Tudo depende de mim, ou de como você me manipular -- disse o Livre-Arbítrio. -- Mas saiba que nenhum caminho é sem dor.

10.6.02

O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XXIII


Não se levantaram imediatamente; a preguiça do amor tomou-os por alguns instantes. Por fim, ergueram-se e começaram a explorar o lugar. A noite estava quente, mas uma brisa fresca soprava entre os arbustos e eles passearam pelo labirinto, colhendo frutas aqui e ali para enganar a fome que de repente os tomou de assalto. Não demorou muito, chegaram a uma pequena fonte, diante da qual, sentado a uma mesa com tabuleiros de vários jogos diferentes -- de gamão a diplomacy -- e vestido com uma roupa que parecia reunir estilos de várias épocas, estava um estranho ser. Fumava um charuto, mas a seu lado havia maços de cigarros, cachimbos e cigarrilhas; cestas de frutas ombreavam-se com pratos de carne e peixe perto da fonte, enquanto ele saboreava um brigadeiro.
Mas o mais curioso era sua face. Tinha um olho azul e outro verde; meio bigode sob o nariz; metade do cabelo era cortado à escovinha, enquanto o outro lado escorria pelos seus ombros; e, se o tórax era bem desenhado, era difícil esconder a barriga que se lhe seguia.
Jon e Daniela pararam, observando a figura. Ele largou o brigadeiro por um cacho de uvas pouco antes de vê-los; quando finalmente os descobriu, não sabia se se levantava ou permanecia sentado. Por fim, ficou onde estava e os chamou para perto.
-- Esperava por vocês. Meio limbo já fala da beleza de nossa cara Daniela. Não admira que ela queira aproveitar este belo corpo por mais alguns anos -- sorriu. -- E você deve ser o Jon.
Jon assentiu.
-- Muito prazer. Eu sou o Livre-Arbítrio.

9.6.02

O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XXII


O corpo dela era mais-que-perfeito: os seios, jovens pêras alvas de bicos achocolatados, emoldurados pelos ombros arrredondados mais apolíneos que já existiram. Os cabelos voavam diante da tela interdimensional que continuava passando seu filme; os fios pareciam uma chuva de fogo negro e vermelho diante das montanhas brancas do Everest que agora surgiam na parede. O ventre subia e descia suavemente reclinado sobre o sofá; as pernas, semiflexionadas, tinham o movimento gracioso das grandes aves, mas sua carne era lisa e estranhamente quente (estará ela mesmo morta?, pensou ele). As mãos suplicavam,delicadas, que ele se deitasse sobre ela; os lábios estavam entreabertos e tremelicavam de modo quase imperceptível.
Ele a tomou nos braços e a beijou de novo, recriando o turbilhão em seu cérebro que o prostrara no parque. Beijou devagar o corpo todo, sugando cada poro daquele milagre, fazendo a língua rodopiar pelas aréolas e suas pontas arrebitadas, encostando seu nariz no doce veludo sob o umbigo. Quando a penetrou, sentiu o vórtice em sua cabeça gemer e acelerar, e não demorou muito os dois explodiram de prazer no exato instante em que o teto do apartamento sumiu, substituído por um céu estrelado de Van Gogh. Estavam num jardim com cercas-vivas em forma de labirinto.

8.6.02

O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XXI


-- Pobre Jon -- condoeu-se Daniela, parecendo-lhe frágil pela primeira vez. -- Você precisa se acalmar. Venha, tome um gole de conhaque.
Ele tomou dois e a tremedeira arrefeceu.
-- Oh, meu Deus, tem certeza que isto não é uma trip de ácido?
-- Você vem comigo? Olhe, eu sei que tudo parece uma loucura para você. Mas é minha única chance. Seus sentimentos por mim conseguiram fazê-lo penetrar nesta outra dimensão. E, embora o tenha atraído com um propósito, eu devo confessar que... você é uma graça. Alguém especial. É sério. Se eu conseguir voltar, teremos os dois uma chance de verdade...
Ele não sabia se era uma entidade ou uma mulher falando. Mas já decidira.
-- Muito bem. Eu vou. Suponho que devo regredir, como você fez?
-- Oh, não. Poderia acontecer com você o mesmo que aconteceu comigo, e aí, adeus. Não, é bem mais simples -- disse Daniela, desabotoando a blusa. -- Faça amor comigo.
Para reforçar: já estão no Amigos Blogueiros as fotos do encontro na quinta-feira. A bela Bani caprichou, elas ficaram ótimas e refletem o clima da festa.

7.6.02

Isso aqui é de doer de rir. Foi enviado pelo Mestre Carlos Alberto Teixeira. Não percam.
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XX


Ela fez um gesto com a mão e uma espécie de tela meio informe surgiu na parede à sua frente. Assim que a imagem clareou, Jon viu Prometeu, exatamente como ela descrevera, e a águia ocupada em devorar seu fígado; criaturas dos trabalhos de Héracles; e alguns escritores como Artaud, Álvaro de Campos (mas não Pessoa) e Shelley. Não havia palavras para descrever o estranho mundo que contemplava; talvez bastasse dizer que a impressão que tais visões lhe causaram foi realmente indelével para o resto de sua vida. Não que ela o tivesse tornado um zumbi, como alguns cogumelos ou microgramas excessivos de LSD podem fazer; mas ele sabia que sua alma se regozijava a cada lembrança das criaturas e paisagens que se sucediam naquele holograma límbico. A beleza das ninfas entretidas em seus jogos naturalmente sensuais, a sabedoria das criações de Shakespeare (ver Julieta consolando Hamlet foi inesquecível), a pujante ousadia da irmandade de Tolkien e a fúria autoconfiante de Rolando e Ganelão em justas intermináveis, o lirismo invencível de Rubem Braga... E ele chorou quando viu a beleza imaculada da modelo do retrato oval de Allan Poe.

6.6.02

Hoje tem festa blogueira no Ernesto, na Lapa. Dona Elis Monteiro no comando. A noite vai ser boa...
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XIX


Nos minutos seguintes, Daniela desfiou pelo que pareceu a ele uma eternidade as histórias mais maravilhosas que haviam surgido desde a aurora da humanidade. Lendas sumérias, egípcias e assírias desfilaram com garbo diante dos ouvidos agora maravilhados de Jon. Ele ficou sabendo também que fim levaram muitos dos mais belos mitos da Hélade, e no processo descobriu ainda um pouco mais das maravilhas do Velho Testamento; ouviu fascinado os encontros de Daniela com personagens tão díspares quando Gregor Samsa e Dorian Gray; e soube ainda que certos escritores desciam (ou subiam) tão profundamente em suas fantasias que por vezes acabavam no mesmo limbo, misturados com seus personagens e ambientes imaginários.
-- Joachim, meu "pai", é Jorge Luis Borges. E aquele moreno barbudo que você encontrou no elevador é Carlos Brito, um jovem escritor que se viu de repente vagando assustado por seu conto de mistério "A profecia".
-- Mas por que eu os vejo aqui?
-- Porque você já está envolvido comigo de algum modo, e a meio caminho da terra de ninguém. Então, algumas figuras interagem com você.
De repente Jon olhou em volta e se deu conta de que sua noção de realidade poderia estar toda errada.
-- E esse apartamento, existe? E você dando telefonemas, e a história de estudar moda... Eu já não sei mais o que é verdade ou mentira! -- exclamou.
Daniela pôs a mão em seu peito.
-- Calma. Como fiquei nesse limbo, não perdi contato com tudo. Esse é o apartamento em que moro, ou morei; ainda não sabem direito o que aconteceu comigo. E consigo falar por telefone com algumas amigas, mais sensitivas. Como aquela esotérica. Então dou a impressão de ainda estar por aí, embora não apareça, entendeu? Digo que estou doente, ou viajando...
-- E sua família? Você não tem família?
-- Eles moram longe, no interior de Santa Catarina. E, lembre-se, faz apenas algumas semanas que tudo rolou. A gente não se fala com freqüência.
-- E aquela história da noite de amor com pizza e vinho? Bastante real, não?
Ela sentiu o ciúme fervendo dentro do medo dele.
-- Perdoe... Eu... eu dormi com o visconde de Valmont, entende? Era impossível resistir... Por favor, entenda, naquela realidade você simplesmente se envolve, não há como ficar alheia...
Jon ficou quieto. Foi Daniela quem falou de novo:
-- Você ainda não acredita, não é? Olhe.
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XVIII


-- Não, seu bobo -- disse ela. -- É você. Não parou para pensar que aquele dia na livraria todo mundo estava olhando esquisito para você? E na padaria, dias atrás, não percebeu que todos riam quando me beijava? Só você me via, Jon. A essa altura, já deve estar sendo tachado de maluco.
-- Mas você existe. O jeito como achei seu endereço... o número do cartão de crédito... ah, desculpe, não era para você saber.... -- Passou a mão pela testa, ainda apavorado.
-- É claro que existo. Sou desta época. Desapareci há poucas semanas. E eu sabia que você ia fazer aquilo. Segundo as regras, eu devia atraí-lo, mas você tinha de me procurar por iniciativa própria.
Jon pensou: "como se eu tivesse tido alguma escolha depois que a vi..." Mas sua mente aguda tinha de tirar aquilo a limpo. Ainda lhe restava uma fímbria de coragem. Olhou dentro dos olhos dela.
-- Daniela, eu... estou aterrorizado. Você entende, não?
Ela suspirou, mas assentiu, ainda acariciando seus cabelos.
-- E como posso saber se o que diz é verdade?
-- Preste muita atenção.

5.6.02

O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XVII


-- O Prometeu do mito? -- perguntou Jon, incrédulo.
-- O próprio. Mas deixe-me ir até o fim. A águia demorou-se alguns minutos e alçou vôo novamente. Ofegante, ele se identificou e explicou porque eu estava ali: "Por ter morrido numa espécie de limbo espiritual, e não na realidade da Peste Negra", disse, "você veio parar no inconsciente coletivo que reúne seres míticos e personagens das grandes histórias de todos os tempos. Daniela -- este é seu nome, não? --, você está condenada a vagar por este limbo para todo o sempre... E desde já aviso: haverá boas companhias, como eu... mas também as criações mais terríveis da mente humana. Todas as epifanias e quimeras convivem aqui. E o pior é que algumas interferem nas outras...". "Aposto que é por isso que o Hércules ainda não te salvou por aqui, não?", perguntei por minha vez. Ele riu: "Ah, isso faz parte do mito. Hércules era o maior loroteiro da paróquia. Dos doze trabalhos ele só fez uns sete, pelo que me lembro. O resto, mandou um monte de 'laranjas' fazerem por ele..."
Jon ouvia e não sabia o que pensar. Mas suas pernas estavam paralisadas. Uma gota de suor salgou seu olho esquerdo. Daniela continuava:
-- Por fim, perguntei a ele se não tinha uma chance de retomar minha vida carnal. "Só se você achar uma conexão com o mundo vivo. E essa conexão tem de se encontrar com os três mestres que governam os limbos, e pedir por você."
A essa altura, Daniela olhou significativamente para Jon e, depois de um beijo em sua testa agora empapada de suor gelado, falou suavemente:
-- Adivinha quem é a conexão...
-- Aquele sujeito barbudo do elevador?
A risada de Daniela ecoou por todo o corpo de Jon.

4.6.02

O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XVI


-- Não me machuque -- gaguejou Jon.
Daniela tomou-o pelo braço e fê-lo sentar no sofá novamente, com delicadeza. Beijou-o na face e ele temporariamente se sentiu calmo e apaziguado. Sim, estava falando com uma mulher morta, disse-lhe Daniela, mas não havia porque sentir medo. Nenhum morto pode fazer mal a qualquer ser vivente, garantiu. Pediu-lhe que prestasse atenção, porque não havia muito tempo.
Jon estava entorpecido, mas ainda tinha pulgas suficientes atrás da orelha para perguntar como diabos ela viera parar ali, se havia mesmo passado desta para a melhor.
-- Bom, depois de todo o sofrimento com a peste eu acordei numa espécie de bosque de oliveiras. Ali estava sentado um sujeito que já fora forte, dava para notar, mas agora estava carcomido pela doença. Ele falou numa língua a princípio estranha, mas o curioso é que mentalmente eu sabia que aquilo era grego antigo e podia entendê-lo. E antes que ele me dissesse três frases, uma água desceu como uma flecha dos céus e bicou a ferida, a essa altura gangrenada, que ele tinha na altura do abdome. Então percebi que estava na Hélade e aquele era Prometeu.
O DESTINO, O LIVRE-ARBÍTRIO E O DESEJO

CAPÍTULO XV


-- O ano da Peste Negra -- disse Jon. Não sabia se acreditava na mulher à sua frente, mas era suficientemente supersticioso para saber que existem mundos ocultos por aí que não podemos alcançar. E Daniela tinha um jeito tão hipnótico quanto o do terapeuta que descrevera.
-- Pois é. Eu morri duas semanas depois. E não consegui voltar da regressão.
Jon começou a tremer.
Levantou-se e tentou fugir, mas as pernas falharam.
Daniela riu, estalou os dedos e a porta da sala, que ficara entreaberta, fechou-se e trancou-se. Sozinha.